Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos injuriam. A quem te bater numa face, apresenta-lhe também a outra; e a quem te levar a capa, deixa-lhe também a túnica. Dá a todo aquele que te pedir e ao que levar o que é teu, não o reclames».
Desde que nasci, já terei ouvido este texto pelo menos tantas vezes quantos os anos de vida que Deus me concedeu. E, no entanto, não deixa de parecer “cantiga de embalar”.
Acontece comigo e pode acontecer convosco. Isto porque sentimos dificuldade em encontrar forma de aplicar estes ensinamentos de Jesus na nossa vida quotidiana. E o que não é concreto é abstrato, imaterial, incorpóreo, impalpável, intangível. Desse modo, e mesmo sem termos noção, a distância entre a vida de Jesus e a nossa torna-se cada vez maior: lemos o Evangelho da multiplicação dos pães para logo a seguir nos queixarmos que o pão é duro. Ouvimos o mandamento de não julgar os outros para logo a seguir chamarmos isto ou aquilo a quem quer que nos apareça pela frente, seja porque pensa ou vive de forma diferente. Escutamos o mandato missionário para logo a seguir afirmarmos, sem qualquer discernimento, que o que já fazemos e como fazemos é a vontade de Deus.
Mas no dia em que começarmos a concretizar o mandamento grande do amor e do perdão, isso tornar-se-á não apenas o somatório de boas ações, de coisas boas que fazemos ou de coisas más que evitamos, mas mudará radicalmente a nossa vida, a forma como nos relacionamos uns com os outros, com Deus, e como olhamos para nós mesmos. Não é por acaso que muitas pessoas, na Confissão, se limitam a dizer “eu não mato nem roubo”… mas falta reconhecerem, já agora, “eu não vivo”.
A opção muito clara e consciente pela não-violência, o perdão, a misericórdia e o amor, dá sentido à vida e constrói-se com gestos diários, que nos fazem ser imagem de Cristo, e, embora trazendo ainda em nós a imagem do homem terreno, que somos, vamo-nos configurando à imagem do homem celeste (Cf. 1 Cor 15,45-49) que Deus nos chama a ser.
Para isso é necessário, antes de mais, sermos fiéis ao mandamento de Jesus no nosso tempo e nos lugares onde nos movemos. É aquilo a que chamamos de fidelidade criativa ao Evangelho.
Para nos ajudar, proponho três histórias: a que nos é dada pela primeira leitura, depois uma contada por um neto de Mahatma Gandhi, e uma terceira sobre o trabalho de um sacerdote no Bangladesh.
Na primeira leitura (Cf. 1 Sam 2.7-9.12-13.22-23), percebemos que o rei Saul procurava David para o matar. Numa noite, o feitiço virou-se contra o feiticeiro e foi David quem teve a oportunidade de matar Saul. Se o fizesse, dir-se-ia que foi em legítima defesa. Mas, aos olhos de Deus, só a morte natural é legítima, tudo o resto são tentativas de nos colocarmos no seu lugar, decidindo quem vive, como e até quando.
O que David fez foi levar a lança e o cantil de Saul para este perceber que a sua vida havia sido poupada, que em David era maior o amor e o perdão do que o ódio e o desejo de vingança. E essa foi a maior lição que David podia ter dado a Saul. De forma criativa, David foi misericordioso como o Pai celeste é misericordioso, e isso mudou radicalmente a forma como Saul olhava para David e, de algum modo, a forma como passou a exercer o poder. O perdão transforma-nos!
A segunda história foi relatada na primeira pessoa por Arun Gandhi, neto de Mahatma Gandhi. Diz ele que, quando ainda era muito jovem, num certo dia, acompanhou o pai à cidade onde este ia dar uma conferência. O pai pediu-lhe que levasse o carro à oficina e que depois o fosse buscar novamente às cinco da tarde para regressarem juntos a casa.
Conta ele que foi ao cinema e, quando se deu conta da hora, correu para a oficina tendo chegado junto do pai bem mais tarde do que o combinado. Então o pai perguntou-lhe: «porque chegaste tarde?» Ao que Arun, com medo de dizer que tinha ido ao cinema, e sem saber que o pai já tinha ligado para a oficina, respondeu dizendo que o carro ainda não estava pronto. Sabendo que estava a mentir, o pai disse a Arun: «Algo não está bem na forma como te tenho criado, que não te faz sentir confiança para me contares a verdade». E acrescentou: «regresso a casa a pé para refletir sobre isto».
Vestido de fato e sapatos, no meio da escuridão da noite e por estradas de terra batida, caminhou as dezoito milhas (perto de 29 quilómetros) que separavam a cidade da sua casa. Arun não queria deixar o pai sozinho na estrada pelo que foi conduzindo atrás dele durante aquelas cinco horas e meia, vendo-o sofrer a agonia uma mentira infantil.
A maior parte dos nossos castigos têm mais de desespero e violência do que de pedagogia e amor e por isso raramente ensinam alguma coisa. Esta ação pedagógica e não violenta do seu pai foi tão forte que marcou Arun Gandhi para sempre. Este é o poder da vida sem violência, o poder do amor, da bênção e da oração.
A terceira história é a de um missionário chamado Bob McCahill, que trabalha há mais de quarenta anos no Bangladesh e, como o próprio confessa, nunca anunciou publicamente o Evangelho.
O Bangladesh é um país de extrema pobreza e com uma população maioritariamente muçulmana. O padre Bob faz a sua oração da manhã e celebra a Eucaristia sozinho, na sua barraca, depois pega na bicicleta e vai ao encontro das pessoas: fala com todos, mas presta particular atenção aos doentes e, entre esses, as crianças.
Muda de terra de três em três anos. No primeiro ano, as pessoas olham este homem com alguma desconfiança. No segundo ano, já o olham com simpatia. No terceiro ano, cria-se um clima de grande amizade e perguntam-lhe a razão de querer viver no meio deles. Muitos até lhe dizem que dava um “bom muçulmano”. É então que ele se apresenta como cristão e sacerdote católico, levanta a tenda e começa do zero noutro local.
Nunca rezou ou falou de Jesus em público! No entanto, a vida do padre Bob McCahill está repleta de Evangelho e mostra que cada um de nós pode fazer muito, fazendo o bem em vez de passarmos a vida a queixarmo-nos do que está mal.
A realidade é infinitamente maior do que a ideologia, e a realidade está cheia, por um lado, de beleza a oferecer-se à nossa contemplação, e, por outro, de feridas a exigirem cuidado e cura. Por isso, mais do que textos, ainda que belos e poéticos, precisamos sobretudo de gestos concretos que, com criatividade, nos falem de não-violência, perdão, misericórdia e amor, e nos encham de esperança.
Eu teria muita dificuldade em confiar a minha vida a alguém que castiga, que julga e condena, ou que fala sistematicamente mal dos outros, seja qual for a sua religião, mas não teria dificuldade em confiar a minha vida ao Pe. Bob, Católico, ao pai de Arun Gandhi, Hindu, a David, Judeu, ou a algum Muçulmano que ama e vive pelo amor.
Porque não basta não matar e não roubar, é preciso viver e viver bem.
Leituras:
1ª: 1 Sam 26, 2. 7-9.12-13.22-23; Sal 102 (103), 1-2. 3-4. 8 e 10. 12-13; 2ª: 1 Cor 15, 45-49; Ev: Lc 6, 27-38