Tal como no passado domingo, o Evangelho diz-nos que uma multidão seguia Jesus. Seguiam-no porque viam os milagres que Ele fazia. E porque procuravam um Deus que lhes resolvesse o problema da fome e todos os outros problemas. Por isso queriam fazê-lo rei. Com um rei assim, nunca lhes haveria de faltar nada, pensavam.
Por essa razão, Jesus “retirou-se novamente, sozinho, para o monte” (Jo 6,15b). Com certeza pesaroso. Aquela gente não percebeu nada. Nem sequer o apóstolo Filipe, que, quando questionado por Jesus, responde com os chavões do capitalismo selvagem: “Duzentos denários de pão não chegam…” (Jo 6,7) para todos. Paciência! É a mesma lógica, egoísta e desumanizante, de quem tem muito e tudo guarda para si, sem olhar a quem está ao lado, a lógica que aceita como normal que uns possam estragar comida e outros possam passar fome, uns possam possuir terras a perder de vista e outros nem 50 m2 para construir uma barraca e semear hortaliças.
Jesus pergunta-lhe “Onde havemos de comprar pão para lhes dar de comer?” (Jo 6,5b) para o provocar a ser parte da solução, não a resignar-se com a lógica mercantilista.
Felizmente havia ali “um rapazito com cinco pães de cevada e dois peixes” (Jo 6,9a). Jesus aceita a sua generosidade e multiplica-a.
Mas primeiro manda-os sentar. Preocupa-se com o seu bem estar, que se sintam acolhidos, amados. Não são pobres obrigados a estar de pé e a fazer fila por um prato de sopa ou uma vacina, mas pobres sentados ao mesmo nível de Jesus, à mesa do Reino. Depois deu graças, pois reconhece que tudo e todos são um dom de Deus. E é esse olhar agradecido pela vida, o mundo e os outros, que nos dá a certeza de que somos chamados por Ele não a explorar mas a cuidar dos outros e de toda a criação, e que permitirá transformar a lógica de mercado na lógica da partilha e da comunhão.
Num trabalho sobre Pedagogia Social, Adérito Barbosa, conta em língua portuguesa a seguinte história da tradição oral africana, já divulgada em muitas línguas:
“Um antropólogo estudava os usos e costumes de uma tribo na África. Como ele estava sempre rodeado pelas crianças da tribo, decidiu fazer algo divertido entre elas. Comprou muitos doces na cidade e colocou todos os doces dentro de um cesto decorado com fita e outros adereços, e depois deixou o cesto debaixo de uma árvore.
A seguir, chamou as crianças e combinou a brincadeira. Quando ele dissesse agora, elas deveriam correr até àquela árvore e o primeiro que agarrasse o cesto seria o vencedor e teria o direito de comer todos os doces sozinho.
As crianças prepararam-se, esperando pelo sinal combinado. Dado o sinal de partida, todas as crianças deram as mãos umas às outras e saíram a correr em direção à árvore, onde estava o cesto. Chegando lá, começaram a distribuir os doces entre si e a comerem-nos felizes.
O antropólogo foi ao encontro delas e perguntou porque é que elas tinham ido todas juntas, se uma só poderia ficar com tudo o que havia no cesto e, assim, ganhar muitos mais doces.
Elas simplesmente responderam: ubuntu, tio. Como poderia uma de nós ficar feliz se todas as outras estivessem tristes? Ele ficou desconcertado! Meses e meses a trabalhar com eles, a estudar a tribo, e ainda não tinha compreendido, profundamente, a essência daquele povo.” (BARBOSA, Adérito Gomes, Contributos para a Pedagogia Social: Neuroética. Educação vagarosa e ubuntu, in Cadernos de Pedagogia Social, 4 (2012), pp. 197-2018.)
Ubuntu é uma noção que existe nas línguas Bantu, faladas pelos povos da África Subsaariana, e que exprime a interconexão dos seres humanos, a consciência da relação entre o indivíduo e a comunidade, onde “a humanidade de cada indivíduo está idealmente expressa na relação com outros”, segundo a tradução de um provérbio xhosa.
Para vários autores, ubuntu é o fundamento da filosofia africana. O arcebispo Anglicano Desmond Tutu, Prémio Nobel da Paz em 1984, desenvolveu inclusive uma ‘teologia ubuntu’ e define ubuntu da seguinte forma: “uma pessoa com ubuntu está aberta e disponível para as outras, apoia as outras, não está preocupada em julgar os outros como bons ou maus, e tem a consciência de que faz parte de algo maior que é diminuído quando os seus semelhantes são humilhados ou diminuídos, torturados ou oprimidos.”
Para Desmond Tutu, Deus criou a humanidade indissoluvelmente interligada, isto é, os seres humanos são seres fundamentalmente livres em relação, tratando-se, portanto, de uma “liberdade indivisível”. É também, de algum modo, aquilo que o Papa Francisco não se cansa de afirmar na Laudato Si’: “Tudo está estreitamente interligado no mundo” (LS 16).
Ubuntu tem, pois, a ver com a pessoa na sua relação com os demais, o cuidado do outro, do apoio mútuo, mas na diversidade, sem anulação das diferenças. De certo modo, ubuntu significa que os outros ajudam-nos a ‘ser’: “sou o que sou graças ao que somos todos nós”. E tem como valores fundamentais o humanismo, o carinho, o altruísmo, o respeito e a compaixão.
Este conceito está na origem da escolha do nome do sistema operativo de código aberto, construído a partir do Linux e baseado no Debian, fundado pelo sul-africano Mark Shuttleworth e que conta com a comunidade de programadores para o desenvolver e melhorar. A ideia é que todo o mundo possa beneficiar deste software e assim a tecnologia possa ser não causa de separação mas de comunhão.
Por isso, a escolha entre Windows ou Linux, não é apenas a escolha entre dois sistemas operativos, mas a escolha entre duas formas de ver o mundo, porque as nossas escolhas éticas devem refletir-se na forma como vivemos, no que comemos e vestimos, nas viagens e nas compras que fazemos, e no software e na tecnologia que usamos.
Mas, em perspetiva cristã, ubuntu é ainda mais do que isso, porque, se Deus criou a humanidade indissoluvelmente interconectada, então ubuntu é uma esperança de justiça, em sentido restaurador, de reconciliação total (não retributiva) e de perdão, num mundo repleto de violência e injustiça, como explica o teólogo Charles Haws.
De Nelson Mandela e Desmond Tutu, e também do povo timorense depois da independência, o mundo aprendeu o significado do perdão, da justiça sem vingança. Eles serão recordados para sempre. Já quem vive preocupado em julgar os outros como bons ou maus, santos ou pecadores, primeiros e últimos, em dividir os homens em categorias, ou simplesmente a dividir, ainda não percebeu nada.
Deus “abre as suas mãos” (Cf. Sl 145,16) e dá o alimento de que nós precisamos. Nós, no plural e na diversidade, somos provocados, como o Apóstolo Filipe, a encontrar soluções para garantir que ele chega para todos.
Ubuntu, tio
Leituras:
1ª: 2 Rs 4,42-44. Salmo 145/144,10-11.15- -16.17-18. R/: Abris, Senhor, as vossas mãos e saciais a nossa fome. 2ª: Ef 4,1-6. Evº: Jo 6,1-15. I Sem. Saltério.