Hoje ouvimos as primeiras palavras do Evangelho segundo São Marcos, que nos irá acompanhar ao longo de todo o ano litúrgico. Marcos faz questão de dizer logo ao que vem: as profecias de Isaías e dos outros profetas encontram cumprimento n’Aquele que é mais forte do que João Batista. João é uma das grandes figuras do Advento e não é por acaso.

Todo o líder político, todo o profeta ou líder religioso, e todo o vendedor de ‘banha de cobra’, que queria fazer-se ouvir, dirigia-se às cidades da Judeia e, sobretudo, a Jerusalém. João Batista escolhe outro caminho. Deixou para trás a urbe e o templo porque deixou de acreditar neles, mas, sobretudo, deixou para trás o homem velho para assumir novas opções e um novo estilo de vida.

João veste-se de pêlos de camelo não tanto em sinal de austeridade e pobreza mas, sobretudo, em sinal de protesto contra o fariseísmo, que considerava o camelo um animal impuro. É um protesto contra as aparências, uma bofetada de ‘luva branca’ naqueles que gastam o olhar para ver quem cumpre ou não cumpre os preceitos, mais humanos do que divinos, em vez de o gastar para ver, ‘com olhos de ver’, a indigência, o sofrimento, a pobreza e a solidão das pessoas ao seu e nosso lado.

João alimenta-se de gafanhotos e mel silvestre, alimenta-se do que a natureza oferece. É um regresso à natureza e aos seus dons. Com um pouco de imaginação poderíamos olhar para isso como um protesto contra um mercado injusto, que, ainda hoje, pouco beneficia os produtores. Mas é, seguramente, uma opção pessoal de viver com gratidão e responsabilidade daquilo que a natureza oferece, opção muito atual para os dias de hoje.

João não vai para o deserto para fugir da podridão e injustiça das cidades, que falhavam na proteção dos mais frágeis, mas para marcar uma posição. João não vai ao deserto pelo deserto. João vai ao deserto pela vida. A travessia do deserto é necessária para chegar ao Jordão, para chegar à vida. O caminho é necessário para perceber quanto tenho de mudar na minha vida para que ela seja realmente vida. O caminho e o deserto fazem-me perceber a urgência de começar um processo de conversão e de transformação pessoal, mas também social e eclesial. Por isso, João oferece um batismo de penitência, não a quem quer ‘estar de bem com Deus e com o diabo’, mas a quem se quer comprometer com a mudança e conversão das estruturas que geram injustiça e violência.

O texto diz que «acorria a ele toda a gente da Judeia». Talvez São Marcos quisesse dizer que acorria a ele todos quantos se podia esperar que fizessem esse caminho de conversão: os pobres, os doentes, os publicanos, rejeitados pelos judeus, as prostitutas, aqueles no meio dos quais vamos encontrar muitas vezes Jesus, pois animava-os o desejo de ouvir uma palavra consoladora de perdão, de libertação, de salvação.

Nos nossos hospitais e lares de idosos, os profissionais de saúde usam equipamentos de proteção individual que só lhes deixa ver os olhos. Mas, para os doentes e utentes internados, são olhos de «consolação» (1ª leitura), num confinamento que pode ser uma autêntica experiência de deserto.

Esta pandemia lembra-nos o que, desde sempre, na verdade, devia ser óbvio: somos frágeis e precisamos uns dos outros. Não nos percamos em ‘coisinhas’ e em ‘guerrinhas’ que não levam a lado nenhum e, sobretudo, não levam a uma vida com sentido. Empenhemo-nos para que o Senhor, mais forte do que João Batista, e que batiza no Espírito Santo, nos «encontre na paz» (2ª leitura). «É de paz que Deus fala ao seu povo e aos seus fiéis» (Salmo).

Dentro de poucas semanas, veremos que também os Magos decidem escolher outro caminho. Cada um faça as suas opções.

Vem Senhor Jesus, o deserto cheira a Terra Prometida!

 

Leituras:

1ª: Is 40,1-5.9-11. Salmo 85/84,9ab-10.11-12.13-14. R/ Mostrai-nos o vosso amor e dai-nos a vossa salvação. 2ª: 2 Pe 3,8-14. Evº: Mc 1,1-8. II Semana do Saltério.

 

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