A primeira leitura (Cf. Jer 1,4-5.17-19) fala-nos de Jeremias, constituído profeta e enviado em Missão. Mas não ao engano: «Eles combaterão contra ti» (Jr 1,19), disse-lhe Deus. É difícil a tarefa que o espera. Mas logo em seguida o próprio Senhor procura dar-lhe alento: «não poderão vencer-te, porque Eu estou contigo para te salvar».
Ontem, como hoje, quem se atreve a transmitir com coragem e fidelidade a Palavra de Deus – entenda-se fidelidade criativa –, arrisca-se a encontrar forte resistência ou até a ser perseguido, seja no seio das famílias, das empresas, das instituições ou até das comunidades religiosas.
Coragem e fidelidade em obediência a Deus, que envia, mas também àqueles a quem são enviados, porque a caridade, de que fala São Paulo na segunda leitura (Cf. 1 Cor 13,4-13), «não procura o próprio interesse» mas «alegra-se com a verdade».
Isso levou Jesus, na sinagoga da sua terra, a ler a parte de um texto do Profeta Isaías que anunciava um ano de graça do Senhor mas, propositadamente, a omitir a leitura da parte que fala de vingança contra os de fora, os que não aderem ao Deus de Israel.
Assim, Jesus falava às suas gentes de um Deus misericordioso para com todos, e isso era, para eles, inaceitável, pois se achavam os únicos com direito à salvação, parecendo ter particular gosto em ver os que não eram do seu grupo a “entrar no inferno em fila indiana”.
Jesus não podia ir ao encontro das suas pretensões, não podia dizer o que eles queriam ouvir, pois o ADN de Deus, que Ele tão bem compreendeu, é amor, é misericórdia, é caridade. Portanto, da sua boca, não podiam senão sair palavras de graça.
Na sua pregação, Jesus procura assim corrigir as falsas expectativas do dos amigos e conhecidos que o escutavam, e, para isso, recorre a dois profetas muito respeitados pelo povo de Israel: Elias e Eliseu. O Profeta Elias foi ao encontro de uma viúva de Sarepta e o Profeta Eliseu recebeu um militar leproso procedente de Damasco, ambos estrangeiros e pagãos.
Mas nem assim! Apesar de escutarem as mesmas leituras que Jesus, os seus corações estavam fechados numa fé hermética, sem discernimento.
Por isso, se no início parecem admirar-se com as palavras de Jesus, logo vem a desilusão e, em seguida, a ira. Então se percebe que não foi a Jesus que receberam mas a uma ideia que tinham acerca d’Ele, como nós, tantas vezes, não recebemos o Deus de Jesus Cristo mas um Deus feito à nossa medida.
Não conseguiam, portanto, aceitar a interpretação de Jesus, que eles julgavam conhecer bem, pois viram-no crescer, eram os seus vizinhos. E não aceitavam porque estavam fechados à novidade, à surpresa. Viviam uma religiosidade sem espírito.
Mas Jesus não podia, de maneira nenhuma, manter-se em silêncio e evitar o conflito, como não podia dizer-lhes o que eles queriam ouvir.
Se o fizesse teria sido amado pelas gentes da sua terra, estimado, honrado com presentes e convidado todos os anos, depois da Ressurreição, para ir “pregar nas festas de S. Estêvão”. Provavelmente até lhe faziam um busto para colocar na praça central de Nazaré.
Mas andar ao sabor do que a malta quer ouvir, pondo a Palavra de Deus a dizer o que nos dá jeito que diga para cairmos nas suas graças, é, hoje como ontem, uma forma de prostituição.
Por isso Jesus sabia que «nenhum profeta é bem recebido na sua terra», entre os seus, com hábitos de décadas, e o “sempre se fez assim” como jaculatória.
Os milagres e sinais de Jesus eram para manifestar a misericórdia e libertação de Deus, não para se exibir, ser bem recebido e ganhar fama de pregador.
Então, cheios de cólera, «levantaram-se». É a cólera, a fúria, o ódio que os faz levantar, não o amor, a urgência de responder à necessidade dos pobres ou dos que estão tristes ou doentes. É a cólera.
«Expulsaram Jesus da cidade e levaram-n’O até ao cimo da colina sobre a qual a cidade estava edificada, a fim de O precipitarem dali abaixo». Acontece que ali não há colina nenhuma de grande altitude. Prenúncio da outra colina? O Gólgota? A Cruz? Levaram-no ao monte para o esconder, para o fazer desaparecer, para o “varrer para debaixo do tapete”, para o matar, como matamos falando mal daqueles de que não gostamos.
A missão de todo o verdadeiro profeta está revestida de cruz. É preciso ser forte para aceitar sofrer às mãos ou à língua de quem está instalado e não aceita mudar uma vírgula na sua vida. E é preciso ter um coração suficientemente livre para deixar a sua terra e ir para Cafarnaum.
Por isso, Jesus, passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho. Um caminho que continuará a ser livre e libertador, de misericórdia e de graça e não de ódio e vingança.
E por isso o irão perseguir. Não querem alguém que “pensa fora da caixa” e não foi revestido com autoridade pelas instituições religiosas. É melhor matá-lo já pois a sua liberdade é prejudicial aos poderes instalados.
Foi assim na sua terra. Passou pelo meio deles, causando entusiasmo e rejeição.
E passa por nós.
Mas vai além de nós, junto dos pagãos que Deus tanto ama e daqueles que pensam diferente de nós.
Por isso, pode acontecer-nos exatamente o mesmo que àquela comunidade de Nazaré. Escutamos a Palavra de Deus, mas depois a nossa vida, não raras vezes, é religiosidade sem espírito e fé sem discernimento. Se aconteceu assim com eles porque haveria de ser diferente connosco? Somos melhores do que eles? Sim, é possível que andemos muito enganados como aquela comunidade, e andemos a matar o Espírito enquanto julgamos falar em nome de Deus.
«Quando eu era criança, falava como criança, sentia como criança e pensava como criança». Mas agora que me fiz homem, é bom que deixe de vez o que é infantil e, também na vida espiritual, me comporte como gente crescida.
Por isso é tão necessário o discernimento, para sermos capazes de opções verdadeiramente assertivas. A liberdade para deixarmos a Nazaré do nosso conforto e partirmos para a Cafarnaum do desconhecido é, porventura, um dos sinais mais importantes desse discernimento.
E partirmos para Cafarnaum é também aceitarmos que no que é diferente de mim pode estar Deus, que no que pensa de modo diverso de mim pode estar o Espírito de Deus.
Na passada quarta-feira, o Papa Francisco convidou os pais a, diante dos problemas dos filhos, confiarem mais no Senhor. Seja porque desistem da escola ou porque não se esforçam o suficiente, seja porque escolhem caminhos diferentes do sonhado pelos pais, ou porque têm outra orientação sexual, os filhos são muitas vezes motivo de preocupação e angustia para os pais. «A esses pais eu digo que não se espantem. Há muita dor, muita, mas pensem no Senhor, pensem em como José resolveu os problemas e peçam a José que os ajude. Nunca condenar um filho».
Quem condena não é profeta. Até pode usar a Palavra de Deus mas para julgar, não para profetizar. E quem julga coloca-se no lugar de Deus, o que constitui uma doença espiritual que nos deve preocupar tanto ou mais quanto as doenças do corpo. Profeta e mercenário podem ambos saber as escrituras de cor e salteado, como os homens e mulheres daquela comunidade de Nazaré, mas não são a mesma coisa. Um vai para Cafarnaum, o outro fica em Nazaré.
E isso faz toda a diferença!
Jesus passa por nós.
E vai além de nós.
E eu vou com Ele.
Leituras:
1ª: Jer 1, 4-5. 17-19; Salmo: 70 (71), 1-2. 3-4a. 5-6ab. 15ab e 17; 2ª: 1 Cor 12, 31 – 13, 13 ou 1 Cor 13, 4-13: Ev: Lc 4, 21-30