Nota: este texto foi escrito para a celebração do Dia Mundial da Vida Consagrada em 2021.
A Semana do Consagrado, que celebramos de 26 de janeiro a 2 de fevereiro, encontra no Evangelho deste domingo eco para a interrogação colocada com o tema deste ano: “Consagrados: fiéis e felizes?” A questão tem de se colocar porque a resposta não é tão óbvia quanto possa parecer à primeira vista. Como lembra Dom Augusto Azevedo, presidente da Comissão Episcopal das Vocações e Ministérios, a sociedade e a Igreja reconhecem com gratidão a fidelidade dos consagrados que fazem “escolhas ponderadas e permanecem fieis”, o que é diferente de um certo “imobilismo ou cristalização”, à imagem dos escribas e fariseus, que nem é fidelidade nem traz felicidade profunda.
Na Igreja Católica, a vida consagrada é constituída por homens e mulheres que se comprometeram, pública e oficialmente, a viver, individualmente ou em comunidade, os votos de pobreza, castidade e obediência para toda a vida.
Mas vamos ao Evangelho! Marcos (1,21-28) diz-nos que Jesus chegou a Cafarnaum e, no sábado seguinte, entrou na sinagoga onde começou a ensinar e onde curou um homem possuído por um espírito impuro.
Ora, os escribas, mantinham na sinagoga um ensino vinculado às tradições da lei e à separação entre puro e impuro. Não podem, por isso, ter percebido a presença daquele espírito impuro, pois, se assim fosse, não autorizariam a entrada do homem na sinagoga. E não perceberam, porque é o homem que está dentro do espírito impuro (en pneumati akathartô), isto é, da sinagoga endemoninhada, que deveria ser espaço de pureza, santidade e liberdade, mas que, afinal, se tornou e torna, tantas vezes, espaço de uma forma de religiosidade doentia, que fecha o homem sobre a sua própria enfermidade, o aprisiona e enlouquece.
Por isso, Jesus vem para curar o endemoninhado da sinagoga dos espíritos impuros que brotam da própria religião. E fá-lo com um novo ensino (didakhê kainê), com autoridade, não com atos mágicos ou novas imposições rituais, mas com a sua palavra, que purifica, liberta, cura e faz a pessoa sentir-se amada.
Na pergunta feita, no plural, pelo espírito impuro - “Que tens tu a ver connosco, Jesus Nazareno” - há uma possibilidade de acordo, de pacto, de divisão de ‘almas’ ali na sinagoga, mas Jesus, para quem a vida e a consciência são invioláveis, não negoceia nem argumenta, pois há poderes de perversão e corrupção com os quais não há diálogo possível.
Portanto, a autoridade do ensino de Jesus não vem de uma apresentação abstrata de Deus mas porque liberta o oprimido, para que ele possa ser ele próprio, para que possa ser pessoa, na sua liberdade e singularidade. E os espíritos que se sabem e reconhecem impuros, descobrem o poder da santidade de Jesus, do seu interesse e amor pelo enfermo, na sua condição concreta e real, e por isso o confessam como mestre dizendo: “és o santo de Deus”.
Em 2003, poucos dias depois de chegarmos a Laleia, fomos levados pela Irmã Beatriz a uma terra chamada Samalai, a cerca de cinco quilómetros de distância, onde um homem estava preso por uma corrente de ferro a uma árvore porque tinha surtos psicóticos e se tinha tornado um perigo para todas as pessoas da sua aldeia. Levamos connosco um enfermeiro que lhe deu uma injeção e o passou a medicar tendo, desde então, a sua doença controlada. O Senhor quis servir-se de nós para lhe devolvermos a saúde, a liberdade e a dignidade e, à aldeia, a serenidade e um membro novamente capaz de trabalhar. Não sabíamos ainda a língua local mas Deus não estava interessado na eloquência da nossa pregação mas antes em servir-se do nosso coração e capacidade de decidir e agir.
Queridos irmãos, no passado domingo, o Evangelho mostrava-nos Jesus a caminhar junto ao mar da Galileia, onde chamou alguns dos seus discípulos, hoje entra na sinagoga, e amanhã e sempre na realidade e concretude das nossas vidas.
Na vida dos(as) Consagrados(as) entra convidando a uma resposta generosa ao seu amor e pede-lhes que encontrem a verdadeira felicidade na fidelidade, uma fidelidade que não pode ser marcada apenas pelo contar dos anos, por vezes de vidas vazias, aprisionadas em formas e ritos, mas pela vida aberta à ação do Espírito Santo, que liberta e renova interiormente.
O mundo precisa do “testemunho profético de comunidades religiosas orantes, acolhedoras e alegres” lembra-nos também Dom Augusto Azevedo.
Comunidades, digo eu, onde os mais jovens sintam que vale a pena doar a sua vida e não comunidades endemoninhadas, como aquela sinagoga e tantas igrejas de hoje, onde possa haver poderes de perversão com os quais não há diálogo possível, mas que vão matando vocações porque as aprisionam na manutenção de estruturas, obras e projetos que visam mais a auto-preservação do que tornar-se, em cada tempo e lugar, espaços de verdadeira escuta do grito dos pobres e oprimidos e de respostas comprometidas.
Queridos irmãos, como cristãos gratos pelo dom da vida consagrada, rezemos por todos os(as) Consagrados(as) para que possam ter a mesma consciência humilde de São Francisco de Assis de que é preciso começar, “pois até agora pouco ou nada fizemos”.
Pois então, comecemos!
Leituras:
1ª: Dt 18,15-20. Salmo 95/94,1-2.6-7.8-9. R/: Se hoje ouvirdes a voz do Senhor, não fecheis os vossos corações. 2ª: 1 Cor 7, 32-35. Evº: Mc 1,21-28. IV Semana do Saltério.