“Dispara Primeiro… Pergunta Depois” é a tradução portuguesa do título de um filme de Sergio Corbucci.
Um bando de índios rouba um pónei que deveria ser entregue ao presidente dos Estados Unidos da América como presente do imperador japonês. Na tentativa de resgate do pónei, o xerife foi ajudado por um samurai trapalhão e por um bandido conhecido como ‘Suíço’, que trazia uma cruz ao peito.
Lembrei-me do título deste filme, esta manhã, ao ler nos jornais que o Kremlin quer negociar com a Ucrânia, depois de ter invadido o país e de em poucos dias já ter provocado centenas de mortos e feridos e milhares de deslocados, e espalhado medo e destruição por toda a parte.
Na vida real, disparar primeiro e perguntar depois, tem pouco de comédia e muito de drama, como está à vista de todos, não só na Ucrânia, como no dia-a-dia, nos julgamentos que fazemos uns dos outros e que nos vão matando aos poucos.
No Evangelho deste domingo, Jesus não dispara, antes oferece várias questões à nossa reflexão: «Poderá um cego guiar outro cego? Não cairão os dois nalguma cova? […] Como podes dizer a teu irmão: ‘Irmão, deixa-me tirar o argueiro que tens na vista’, se tu não vês a trave que está na tua?»
Naturalmente, Jesus não se refere às pessoas invisuais, por quem, em inúmeras ocasiões, demonstrou uma enorme compaixão, mas aos fariseus, aos sacerdotes e a todos nós, mestres na avaliação dos outros mas, tantas vezes, péssimos na avaliação de nós mesmos.
- Os defeitos que nos recusamos a reconhecer em nós mesmos procuramos expiar morbidamente nos outros.
- O que condenamos nos outros facilmente desculpamos em nós mesmos.
- O que nos parece diabólico no agir dos outros facilmente nos parece sem importância em nós próprios.
Com isto, o Senhor não recusa a possibilidade de nos ajudarmos mutuamente através da correção fraterna, pelo contrário, ela é necessária, desde que feita com bondade e humildade.
O que critica é a nossa pretensão de denunciar as fraquezas dos outros, humilhando-os e rebaixando-os, procurando constantemente tirar os ciscos dos olhos dos irmãos, sem nos darmos conta das traves imensas que temos nos nossos e que nos impedem de ver as coisas com clareza.
Hoje, como ontem, o mundo está cansado de tagarelas que só parecem felizes fazendo outros sentirem-se infelizes, menos competentes, menos bonitos, menos inteligentes, menos ricos. Acham-se donos da verdade mas «quando agitamos o crivo, só ficam impurezas».
Queremos homens e mulheres que se adentrem corajosamente no caminho da sabedoria, que vigiem sobre as suas próprias palavras, pensamentos e sentimentos. Pessoas que digam em privado o mesmo que diriam em público. Pessoas que nos inspirem, que acreditem em nós e nos ajudem a ser melhores, a fazer mais do que falar, a querer mudar o mundo. Pessoas de Deus!
Daí a atualidade do famoso aforismo grego, escrito no pátio do Templo de Delfos: «conhece-te a ti mesmo». O auto-conhecimento é necessário para sermos mais do que casca de fruta; é necessário para sermos sumo e sermos santos.
«O discípulo não é superior ao mestre, mas todo o discípulo perfeito deverá ser como o seu mestre», deverá percorrer os seus passos. E, nesse percurso de crescimento humano e espiritual, a autocrítica e o exame de consciência são instrumentos imprescindíveis.
- Um verdadeiro mestre nunca se coloca no lugar de um juiz, antes trata a todos como irmãos.
- Um verdadeiro discípulo, quando não tem nada de útil para dizer, aprende o valor do silêncio.
- Um verdadeiro mestre tem na boca palavras cheias de bondade, pois de bondade está repleto o seu coração.
- Um verdadeiro discípulo sente-se grato por cada gesto ou palavra que edifica e o faz crescer, por cada flor que desponta ou pássaro que canta.
- Um verdadeiro mestre considera-se a si mesmo um discípulo, aproveitando cada oportunidade que a vida lhe dá, mesmo no sofrimento, para aprender.
- Um verdadeiro discípulo, mesmo de idade avançada, aceita que tem muito a aprender da boca do mestre e, sobretudo, caminhando com ele, partilhando da sua vida e experiência.
Quando Lucas escreveu este texto, a cidade de Jerusalém já havia sido completamente destruída, e ele procurava mostrar como a fé cristã se apresentava como um caminho de superação da violência.
Na sua pedagogia, Jesus lembra-nos que todos precisamos de um olhar novo e atento e um coração pacificado de onde transborde a doçura dos figos.
Pois cristão que é cristão é pessoa de paz e de bem, não julga, não condena, nem fala mal de ninguém.
De outro modo, podemos trazer uma cruz ao peito, ou um hábito, um escapulário ou um terço e, ainda assim, como o artista do filme, não passarmos de um bandido.
Leituras:
1ª: Sir 27, 5-8 (gr. 4-7); Sal 91 (92), 2-3. 13-14. 15-16; 2ª: 1 Cor 15, 54-58; Ev: Lc 6, 39-45