Em meados de 2018, fui com uma pessoa de Barcelos a Timor-Leste, para terminarmos uma obra em Cairui. Na véspera do nosso regresso a Portugal, uma menina, chamemos-lhe Maria, muito pobre, abandonada pela própria mãe e criada por uma avó, veio ter connosco e ofereceu-nos um saco de arroz. O arroz é a base da alimentação em toda a Ásia e, naquela zona, a cultura que ocupa os terrenos mais férteis. Os primos mais velhos da Maria, que foram estudar para a capital, de vez em quando, vinham à terra buscar arroz, para que nunca lhes faltasse na cidade. Ela cresceu a acreditar que ninguém podia sobreviver sem aquele arroz, por isso, não queria que nós regressássemos a Portugal sem um pouco de arroz para não morrermos. A Maria amava-nos como só um pobre sabe amar.

Sempre que leio o texto da viúva de Sarepta (1 Rs 17, 10-16 ) e o da viúva elogiada por Jesus (Mc 12,41-44), primeiro, lembro-me da Maria e de todas as Marias que me ensinaram o que é amar alguém, e, depois, coro de vergonha, porque continuo a dar da roupa, dos alimentos, do tempo, das forças, do dinheiro e dos dons que me sobram, enquanto as viúvas e as Marias ofereceram tudo o que tinham, tudo o que possuíam para viver.

A viúva de Sarepta tinha apenas um punhado de farinha e um pouco de azeite para cozer pão para si e o seu filho e, depois, esperar a morte de panela vazia, uma espera lenta e agoniosa. Para quem tem fome, não se trata de viver um dia de cada vez, como quem fala de despensa e barriga cheia, trata-se de morrer um dia todos os dias.

Já a viúva elogiada por Jesus, ofereceu «tudo o que possuía para viver», isto é, ofereceu a sua vida. Com certeza que Jesus estaria também a falar de si próprio, da sua entrega até à morte, Ele que, sendo rico, se fez pobre por nós, para nos enriquecer com a sua pobreza (Cf. 2 Cor 8,9), Ele que se fez pão para alimentar a nossa fome de amor e de paz e a nossa sede de verdade e de justiça.

De qualquer modo, o gesto de ambas recorda-nos que a confiança em Deus não é coisa que se possa viver em teoria. Ou se confia em Deus ou não se confia. A minha avó materna, que Deus a tenha, também muito pobre, dizia às filhas que tempo e dinheiro dado a Deus, nunca lhe fez falta. Ou se confia ou não se confia!

Mas, voltando ao Evangelho, ao afirmar que as duas pequenas moedas daquela mulher pobre têm mais valor para Deus do que as «avultadas quantias» deitadas pelos ricos, Jesus inverte completamente a cadeia de valor e toda a lógica de mercado. Eles davam em quantidade, ela, juntamente com a esmola, estava a dar-se a si mesma.

É que não basta dar coisas, é preciso sentir compaixão, empatia em relação à situação de quem sofre, é preciso dar-se, envolver-se. Dar uma esmola ou comida apenas com a mão e a carteira, sem nos envolvermos, pode ser apenas um modo de aliviar a nossa consciência por levarmos um estilo de vida que – e no fundo sabemo-lo – é responsável por perpetuar tantas outras formas de pobreza, além da fome:

  • As t-shirts baratinhas que compramos, feitas no Bangladesh por crianças que deviam estar na escola.
  • O jogo legal, que desgraça famílias inteiras, mas são fonte de receita para o Estado.
  • A especulação imobiliária que coloca no mercado quartos sem grandes condições a 200 euros por mês ou um T1 por 400. Etc., etc., etc.

Tudo formas de pobreza consentidas por nós, porque legais... mas imorais!

A teorização acerca da pobreza, sem um banho de realidade, não pode senão esbarrar na frieza das relações desiguais e na dureza dos estômagos vazios. Nem a esmola nem a opção teórica pelos pobres, por si só, criam relações próprias de irmãos em Cristo.

Por essa razão, se hoje não há dúvidas de que a Igreja fez uma opção clara pelos pobres, os preferidos de Jesus, já o lugar que tantas vezes lhes está reservado, põe a nu a verdade que habita o nosso coração. É preciso, pois, vigiar os nossos corações e o coração da Igreja, onde devia estar o evangelho dos pobres e dos oprimidos mas, tantas vezes, está ocupado por um jardim só de narcisos.

O documento preparatório do Capítulo Provincial dos Capuchinhos, realizado há cerca de um ano, lembrava os irmãos de que «quando deixamos de servir os "pobres, nossos mestres” (John Corriveau), com as nossas próprias mãos, é possível que, sem nos apercebermos, passemos a falar deles ou a ‘usá-los’ como se tratassem de um ‘adereço’ da Ordem e da Igreja, uma espécie de marca de relógio, de champô ou de creme da barba.» Esse é um risco real. Por isso é preciso servir os pobres com as nossas próprias mãos, envolvermo-nos e deixarmo-nos envolver.

Mas envolver a partir da realidade do outro. Jesus sentou-se a observar o que se passava. Faz-nos falta isso. Sentar, parar e observar, sem ideias pré concebidas, a realidade, colocando-nos no lugar do outro, procurando ver o mundo também a partir da sua perspetiva pois a minha é sempre a de alguém privilegiado.

Contemplar a pobreza a partir da realidade do pobre implica, pois, despirmo-nos de preconceitos, mas também de julgamentos de qualquer espécie. Quando se dá um pão ou uma esmola a um pobre e ele se atreve a dizer algo que não seja “obrigado senhor” ou “obrigado senhora” logo salta, tantas vezes, a verdade que temos na ponta da língua: “É pobre e mal agradecido”.

E logo salta à vista a pose superior atirando ao ar frases feitas sobre a pobreza, que se tornam troféu de quem ainda não percebeu nada do Evangelho de Jesus. Assim sendo,

  • De que vale a esmola de quem ao virar da esquina diz que determinada mulher foi violada porque se vestia de forma imprópria e se pôs a jeito?
  • De que vale a esmola de quem acha que a violência doméstica é assunto entre marido e mulher e entre marido e mulher ninguém meta a colher?
  • De que vale a esmola de quem diz que as prostitutas só se metem nessa vida porque querem?
  • De que vale a esmola de quem diz que, com tanta informação, só se mete na droga quem quer?
  • De que vale a esmola dos líderes mundiais que se deslocaram para a COP26 em Glasgow em jatos particulares?
  • De que vale a esmola de alguém que tem a coragem de dividir os homens e as mulheres em classes ou categorias, ou o atrevimento de julgar esta ou aquela pessoa?

Nada! Nada de nada, pois a esmola não vale o número escrito na moeda, vale na medida em que nos compromete pessoalmente com os pobres, com quem sofre. É pão e esmola que amarga na boca dessa caridade falsa e mesquinha. Tal como o rei, tantas vezes, a nossa caridade vai nua. Se não somos capazes do respeito pela dignidade de cada ser humano, na sua realidade concreta, então somos de facto muito, muito, muito pobres.

Como deveria ser, então, em perspetiva cristã, a nossa atitude para com os pobres?

  • Primeiro de gratidão. Devíamos ter a coragem de agradecer aos pobres, pela oportunidade que nos dão de nos abrirmos a alguém, a eles e a Deus, a oportunidade de nos santificarmos, de vivermos a vocação de filhos de Deus, e sermos imagem e semelhança de Deus.
  • Depois devíamos pedir-lhes perdão, pelas nossas opções irresponsáveis de consumo. Pela quantidade de comida que desperdiçamos, de roupas que compramos sem necessidade, ou pela casa com muitas janelas que, em vez de permitir ver com clareza quem passa fora, são um espelho de vaidades.
  • E, por fim, devíamos sentar-nos à mesa com eles. Não a um plano superior mas à altura de quem, com as mãos, lava os pés a alguém.

Ao celebrar a Eucaristia, em que Jesus se faz alimento para a salvação de todos, peçamos-lhe que faça também de nós pão partido para a vida daqueles com quem nos cruzamos, seja gente poderosa que nos pode fazer favores e prestar honras, seja pés descalços que não nos fazem outro favor senão o de nos libertar desse torpor espiritual em que a soberba tantas vezes nos mete.

Sempre que houver uma recolha de alimentos para o Banco Alimentar, não nos percamos em pseudo-certezas de que aquilo não chega a quem precisa. Isso são apenas desculpas para não nos mexermos nem deixarmos que os pobres mexam connosco.

Naqueles cestos, disponíveis nos supermercados da cidade, não são colocados apenas alimentos… mas o nosso coração.

 

Leituras:

LEITURAS: 1ª: 1 Rs 17,10-16. Salmo 146/145,7.8-9a.9bc-10. R/ Ó minha alma, louva o Senhor. 2ª: Heb 9,24-28. Evº: Mc 12,38-44. IV Semana do Saltério.

 

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