O povo diz que “Deus escreve direito por linhas tortas”. A mim, chamou-me pelas imagens muitas vezes repetidas na TV sobre o massacre no cemitério de Santa Cruz, em Timor, a partir de 12 de novembro de 1991. As marcas que me deixaram foram muito fortes. Mais forte ainda foi o encontro inesperado com um timorense, na viagem para Roma, a caminho do Jubileu da Juventude. Sentando-se ao meu lado, falou daquele massacre, mais concretamente da imagem em que um jovem aparecia reclinado sobre outro, ferido. Levantou a camisola e disse-me: «O jovem que o Frei viu na imagem, sou eu.» “Gelou-se-me o coração dentro do peito”, como diz o salmo.
Em 2001, o Capítulo Provincial dos Capuchinhos aprovou a proposta de abrir uma nova frente missionária. Foi escolhido Timor-Leste. Dois anos depois, em 1 de outubro de 2003, precisamente no dia da Padroeira das Missões, Santa Teresa do Menino Jesus, parti na companhia do Frei Fernando Alberto e do Frei Hermano Filipe. A nossa primeira experiência foi a de “sem-abrigo”: ao fazermos escala em Bali, na Indonésia, soubemos que o aeroporto fechava a partir das 23 horas. A solução foi permanecer no exterior. Afinal, não fomos os únicos.
Chegámos a Timor no dia 3, véspera da solenidade do nosso Pai São Francisco. Ficamos “reféns” (no bom sentido) até ao dia 7 de manhã, na procuradoria da Diocese de Baucau, pois nesse dia celebravam ali a padroeira de Laleia, Nossa Senhora do Rosário. Foi-nos entregue a então quase paróquia de Nossa Senhora do Rosário de Laleia, na Diocese de Baucau, por Dom Basílio do Nascimento, ainda hoje seu Bispo titular.
Desde a primeira hora, foi reconfortante sentir o apoio, não só do humilde povo de Laleia, mas também da comunidade intercongregacional de irmãs religiosas brasileiras, nossas vizinhas, e das Irmãs Concepcionistas ao Serviço dos Pobres, a viver em Vemasse, a aldeia vizinha.
A nível de inculturação, enquanto os meus irmãos iam dar aulas – o Frei Fernando no Seminário Maior de Díli e o Frei Hermano Filipe, em Manatuto, capital do distrito –, passei os primeiros meses a ler livros relacionados com a história recente daquele povo martirizado.
Se o dom da palavra e das línguas foi concedido aos outros dois, eu recebi estas mãos fortes e a franciscana “graça de trabalhar”. Afinal, o nosso Mestre Jesus também usou as suas, muito e bem.
Entre outras coisas, era altura de pôr a render os dotes culinários adquiridos no noviciado. Mais tarde, à medida que fomos acolhendo jovens vocacionados, aprendi mais sobre cozinha e ainda mais rico fiquei.
Nas saídas do convento, geralmente levava a máquina fotográfica. Registei milhares de imagens; mas, as mais belas não couberam na câmara: estão gravadas a ouro, com fino estilete, no meu coração. Muitas destas imagens e retratos davam livros com histórias incríveis, que só eu poderia contar. Têm nome, cheiro, movimento. Para mim, são mais preciosas que os mais belos diamantes. Chamam-se: Camilo, Alice, Mariano, Jonito, Juliana, Espedito, Salvador, Maria, João… Multidões de sorrisos, lágrimas, dor, fé, acolhimento. Ainda mostrei muitos desses rostos, numa exposição itinerante. Com o povo timorense aprendi a ser “maior”, sem deixar de tentar ser “irmão menor” no dia-a-dia.
Percorri vales e montanhas, ribeiros e tempestades para contemplar e tocar, antes de mais, o ser humano, depois a natureza, também esta martirizada com queimadas…
Como esquecer as viagens, bem agarrado ao volante, pelo interior do distrito de Liquisá com a Irmã Alice, concepcionista e as suas noviças, na missão de prover habitações minimamente dignas para leprosos e suas famílias?!
Como esquecer o apoio que prestei, também ao volante, na chamada Pastoral da Criança?! Ou as dezenas de máquinas debulhadoras de arroz que reparei?!
Regressei a Portugal em 28 de agosto de 2010. Sete é o número bíblico da perfeição. Mas eu regressei com um pecado: o pecado de querer fazer muito mais. Não me ensinaram que ser missionário, ou melhor, ser missão, é apenas estar com… Isso, aprendi-o em 2011, quando acompanhei missionárias leigas num curso de missiologia.
Dos 3 pioneiros, o frei Fernando é o nosso Ministro Provincial desde 2014; o frei Hermano Filipe, capelão do Hospital de Barcelos e diretor da Revista Bíblica; eu, aqui, mas – com todos, tudo e sempre em Missão.