O texto que segue, foi extraído do volume VIII/1 da “Opera Omnia” de Joseph Ratzinger: “Igreja, sinal entre os povos. Escritos de eclesiologia e ecumenismo” - (Livraria Editora Vaticana, pp. 950) - que reúne e organiza os escritos teológicos do Papa emérito sobre o tema da Igreja.
Os Carismas na Igreja
Como podemos reconhecer se um carismático é autêntico? Esta pergunta não deve ser respondida de modo abstrato, pois foi historicamente vivida e experimentada. Portanto, pode ser esclarecida melhor pelos grandes representantes das funções carismáticas na história da Igreja: Hildegard de Bingen, Catarina de Sena, Francisco de Assis, Teresa de Ávila, Inácio de Loyola, como também por Joana d'Arc e muitos outros. A figura carismática mais significativa na história da Igreja foi, sem dúvida, Francisco de Assis, em cujo destino, talvez, podem emergir melhor, de modo exemplar, as tentações e a grandeza de um carismático na Igreja.
Francisco de Assis não foi, precisamente, fundador de uma Ordem, pelo menos não queria ser. Sabia que lhe caberia uma tarefa bem mais radical: queria reunir “novus populus”, que seguissem o Sermão da Montanha “sine glossa”, onde encontrar uma “regra” única e imediata. Isto, para Francisco, significava exatamente o contrário da "fundação de uma Ordem": ele sempre se opôs, de modo apaixonado, a inserir novas pessoas num esquema jurídico-eclesiástico de uma "Ordem", já conhecido, como uma variante do monaquismo existente, mas com uma espiritualidade particular, com funções e devoções próprias e propriedades específicas. As “Fontes” testemunham, com extrema clareza, com quanta paixão ele rejeitou esta ideia, como teve dificuldade em aceitar enquadrar a sua missão no esquema jurídico de uma "Ordem". O que ele iniciou era bem mais que uma antítese ao monaquismo existente, onde a pobreza individual havia levado a uma riqueza coletiva, cada vez maior, de modo que os mosteiros não representavam mais, como no passado, a fuga “saeculi”, ou seja, a fuga do sistema mundano existente, do qual, ao contrário, eram representantes privilegiados. Cluny, a abadia da reforma do século X ao XII, tornou-se, aos poucos, um dos mais ricos domínios de terras, expressão privilegiada do sistema feudal; tornar-se monge não significava mais fugir do mundo e do seu sistema de dominação e viver do lado dos sem-teto, pobres e esquecidos; pelo contrário, significava pertencer à classe mais alta dos governantes. As Ordens, de modo particular, não representavam mais a “peregrinatio” do Evangelho, a inquietude missionária do apóstolo, mas, com as suas “stabilitas loci”, colocavam a Igreja num sistema eclesiástico local estático, desprovido da dinâmica missionária; não representavam mais a regeneração da sociedade, segundo a fé, mas a expressão de uma completa fusão entre fé e sociedade, na qual o sal da fé perdia, necessariamente, o seu sabor.
Quando Francisco faz apelo por um novo povo, - que não tenha outra regra a não ser a do Evangelho; que não se esconda atrás de interpretações, comentários e reflexões teológicas, mas que se submeta às exigências do Sermão da Montanha; que não tenha a segurança de bens feudais, mas seja submetido à precariedade do trabalho diário, fazendo-se pobre com os pobres - ele nada mais faz que convidar a própria Igreja para a hora escatológica, para se purificar, a partir do Evangelho, a fim de conseguir aquela obediência total que a prepara para a vinda do Senhor. Desta forma, Francisco retoma, no fundo, grande parte do que os “pauperes Christi”, os valdenses, haviam tentado fazer: a Igreja dos pobres contra a Igreja dos nobres e dos grandes latifúndios; piedade e pregação dos leigos contra o domínio de um culto que se tornou fim em si mesmo; simplicidade do Evangelho contra as subtilezas da Escolástica. Todos estes eram assuntos candentes: todos os movimentos deste tipo eram vistos como suspeitos e, muitas vezes, desviados para instâncias puramente sócio revolucionárias e sectárias. Logo, era uma tentativa sem esperança, que, no entanto, Francisco encarou com alegria e fé, ciente da sua obra, a ponto de ir contra a ideia de uma cruzada, como manifestação daquela fé que já se identificava, completamente, com a sociedade num mundo não cristão: a ideia de uma cruzada, contrária à ideia e à prática da evangelização. A rejeição das formas existentes de Igreja, que hoje seria chamada de protesto profético, não poderia ter sido mais radical do que a de Francisco. Ele chegou até às suas raízes, a ponto de ter que exigir "novus populus”. No entanto, este "não" radical às formas concretas do cristianismo ocidental coexistiu com um "sim" a uma Igreja igualmente radical: fazer tudo, em obediência à Igreja Romana, representava, para Francisco, um programa tão radical quanto o de viver na mais completa obediência à letra do Evangelho, colocando-se, completamente, sob a guia do Espírito Santo, precisamente, por causa da sua opção literal... Para Francisco de Assis já havia até uma mística da Igreja Romana, da ordem hierárquica representada por ela, como também uma mística do Evangelho, do Sermão da Montanha e do Espírito, que vem ao nosso encontro, para nos tornar livres.
Desta forma, chegamos à autêntica raiz da natureza e da ação de Francisco, definida como uma dúplice obediência apaixonada: a absoluta obediência à sua missão, que o conduz ao Evangelho, apenas ao Evangelho, que, com a expressão “sine glossa”, valoriza e confirma contra a arte de interpretar e comentar, como sempre. A sua obediência, evidente e clara, perdurou até aos últimos dias da sua vida, quando deixa o seu testamento, como simples Frade Menor, sem ofício e função; uma obediência que, diante da transformação canónica da sua instituição, já realizada, consiste, mais uma vez, em ter recebido a tarefa diretamente de Deus, e a sua integral relação com o Evangelho: “Depois que o Senhor me deu Irmãos, ninguém me dizia o que eu devia fazer: o próprio Altíssimo me revelou que eu tinha que viver segundo o santo Evangelho […]. A todos os meus frades, clérigos e leigos, peço, com decisão, que, por obediência, não acrescentem explicações à Regra ou a estas palavras, dizendo "é assim que devem ser entendidas", mas como o Senhor me disse para transmitir e escrever […]; assim, com simplicidade e sem comentários, deverão observar, santamente, até ao fim”. Além desta obediência integral, pessoalmente recebida, que determina o carisma deste Santo, há também o desejo decidido de ser obediente, na Igreja concreta, sofrendo e suportando o fardo da obediência a Deus, que se realiza apenas nela, com a paciência de cumprir a sua missão, nela e por ela. Aqui, Francisco parece-se, em muitos aspetos, com Santo Inácio, que aceitou, com alegria, as cadeias da Inquisição, para cumprir seja a obediência à sua função, seja a obediência à Igreja concreta, na qual deveria agir: uma nunca pode levar à renúncia da outra, mas apenas à renúncia a si mesmo. Assim, a obediência à sua função não diminui, mas é completada pela sua obediência à Igreja, porque uma é a confirmação da outra; o critério autêntico do verdadeiro carismático é o abandono de si mesmo, ou seja, em termos mais radicais: o critério do verdadeiro carisma é a Cruz, deixando-se dilaniar entre a função e o lugar da sua realização por amor à própria função. Quem não estiver disposto a fazer assim ou preferir a própria incolumidade, ao invés de cumprir a sua função, no seu devido lugar, demonstra que, em grande parte, ainda considera o seu próprio ego mais importante do que a sua função, destruindo assim o carisma. Em última análise, a divisão deriva da fuga da Cruz e do egoísmo. Francisco conseguiu devolver à Igreja (da qual os seus frades haviam sido banidos) o movimento da pobreza e da paz, o movimento dos leigos e da evangelização, porque ele mesmo se submeteu totalmente à Cruz: neste sentido, os estigmas foram, realmente, expressão do lugar e da forma da sua existência. Enfim, isto significa que a Cruz é fonte e, ao mesmo tempo, sinal distintivo do Espírito.
Com isso, chegamos, novamente, com base nas experiências da história da Igreja, ao nexo entre cristologia e pneumatologia, ou seja, de modo mais concreto, à sua interligação, que aprendemos a reconhecer com o que caracteriza a conceção paulina. Mas, agora, a perspetiva muda: em Paulo, sabemos que a pneumatologia se desenvolve a partir da fé na Ressurreição, que se apresenta a nós, hoje, como função da “theologia crucis”. Não se trata de uma contradição. De fato, para Paulo, como para todo o Novo Testamento, a Cruz e a Ressurreição entrelaçam-se, de modo que a Cruz é sempre ressurreição incipiente, ou seja, em termos joaninos: “ir embora” engloba e, ao mesmo tempo, é um autêntico “vir”. Ao invés, neste tempo histórico, o mistério da Ressurreição assume a forma da Cruz; o "já" da Ressurreição está sempre presente, somente, no "ainda não" da Cruz. A Cruz é como "a porta estreita", para a qual a história é canalizada e, pela qual, se dirige para a Ressurreição. Ao Evangelho de João, que conferiu à reciprocidade da promessa escatológica e presente cristão a última forma concetual no Novo Testamento, devemos, também, a mais linda imagem da unidade entre Cruz e Ressurreição, entre cristologia e pneumatologia: a sua narração da Paixão termina com o trespassar do peito de Jesus, de onde jorraram água e sangue (19, 31-37): as narrações da ressurreição culminam com o dom do Espírito Santo, que desceu, como sopro, sobre os discípulos. A narração de Pentecostes e da Páscoa fundem-se, aqui, numa pneumatologia cristológica. A imagem do sangue e da água, que jorram do peito trespassado de Jesus, diz a mesma coisa, com grande força: as águas fecundas do Espírito, que renovam a terra, brotam do Crucificado. O Espírito é fruto da Cruz.
Com isso, somos colocados, pessoalmente, diante das funções e questões atuais da Igreja. De fato, esta afirmação não é válida apenas para aquela época, mas representa o critério permanente da pneumatologia para a Igreja de todos os tempos. A água da vida, que jorra na Igreja, no nosso século, provém daqueles que sofreram, sem reclamar, e não daqueles que, em última análise, pensaram somente em si mesmos. A Cruz é a autêntica distinção entre o Espírito e aquilo que o Espírito não é: somente do Coração trespassado jorram sangue e água. O mistério desta imagem interpela-nos, precisamente, no nosso tempo: é, ao mesmo tempo, orientação, apelo e promessa. Podemos entender, realmente, o que significa "não extingais o Espírito", diante do peito trespassado do Senhor, fonte do Espírito, na Igreja e no mundo.
Joseph Ratzinger - Bento XVI
Livraria Editora Vaticana