Vivendo em pleno coração da Idade Média, S. Francisco de Assis afirma-nos que "por divina inspiração" quis viver "segundo a forma do santo Evangelho".
São vários os textos evangélicos pelos quais tinha especial predileção. Mas há um que constitui o seu programa e determinou a novidade que foi, então, o estilo de vida religiosa inaugurada por Francisco de Assis. Trata-se do texto do envio missionário dos discípulos. Pode ler-se em Mt 10,7-16; Mc 6, 8-11; Lc 9, 2-5. No presente comentário, seguimos o texto de Mateus, por ser o que S. Francisco quis viver à letra, sem comentários.
Diz-nos a "Lenda dos Três Companheiros", um dos primitivos escritos franciscanos, que o Santo de Assis «ao terminar de reparar a igreja de S. Damião, começou a usar o hábito de eremita, cingido com um cinto. Caminhava com os pés calçados e com o báculo na mão. Ouvindo certo dia, durante a missa solene, o que Cristo diz no Evangelho aos discípulos enviados a pregar que não levassem nem ouro, nem prata para o caminho, nem mochila, nem bastão nem pão, nem calçado, e que não tivessem duas túnicas – depois de ter compreendido estas coisas mais perfeitamente dos lábios do sacerdote, exclamou: – É isto que eu quero praticar, com todas as minhas forças!».
E, desde então, esforçou-se por realizar, na sua vida, este texto programático. Ele constitui a medula da vida franciscana. Por isso, vou comentá-lo, acrescentando-lhe também a sua dimensão existencial franciscana.
vers. 7 – “E indo, pregai, dizendo que o Reino dos Céus se aproxima”.
Segundo Mateus, a proximidade do Reino dos Céus era o tema tanto da pregação do Baptista como da do próprio Cristo:
O Baptista: “Naqueles dias, apareceu João, o Baptista, a pregar no deserto da Judeia: – Arrependei-vos, dizia, porque está próximo o reino dos céus”. (Mt 3,1-2)
Cristo: “A partir deste momento, Jesus começou a pregar, dizendo: – Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus”. (Mt 4,17)
Não consta que a pregação de Francisco de Assis tomasse uma dimensão apocalíptica, anunciando o iminente fim do mundo e a vinda do reino de Deus, segundo a concepção medieval. E isto é tanto mais interessante, na medida em que ele quis viver este texto à letra, quando estavam no auge as doutrinas apocalípticas de Joaquim de Fiore (1202). O conteúdo da pregação franciscana deve estar longe desta orientação. Isto deve-se, sem dúvida, ao facto de que Francisco nunca se mostrou anticlerical na sua reforma da Igreja. Além disso, a pregação desses franciscanos devia estar bastante vigiada, segundo se depreende da Regra. De acordo com esta, Francisco exorta os "frades a que, na pregação que fazem, sejam examinadas e castas as suas palavras, para proveito e edificação do povo, anunciando-lhe os vícios e as virtudes, a pena e a glória, em sermões breves, porque também o Senhor falou brevemente sobre a terra". (2ª Regra, IX)
Segundo os escritos franciscanos, o tema número um da pregação de S. Francisco era "a paz", como ele afirma no Testamento: "E esta saudação me revelou o Senhor que disséssemos: "O Senhor te dê a paz" e que está em íntima relação com o texto do envio dos discípulos que estamos a comentar. Depois da paz, o tema número dois era a penitência ou conversão.
vers. 8 – “Curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demónios”.
Os profetas anunciaram que, nos dias do Messias, "se abrirão os olhos do cego e se desimpedirão os ouvidos do surdo; então o coxo saltará como um veado e a língua do mudo dará gritos de alegria" (Is 35,5-6). Por outro lado, para a mentalidade do Antigo Testamento, a doença era tida como um castigo. Por isso, ao libertar-nos do pecado, a actividade consequente do Messias era também a de libertar da doença e da dor (Lc 7,18-27).
Esta missão messiânica entrega-a Cristo à Sua Igreja. Deste modo, no livro dos Actos, são muitos os testemunhos que nos falam de prodígios realizados pelos apóstolos: a cura dum paralítico (Act 3,6); os exorcismos de Filipe (Act 8,7); a cura de Eneias (Act 9,34); a cura duma desinteria (Act 28;8ss), etc. S. Tiago fala-nos dum rito a favor dos doentes (Act 5,16) que os católicos consideram um sacramento, etc.
Francisco de Assis tinha especial cuidado com os doentes. Ele não fundou uma ordem hospitaleira, mas os seus discípulos deviam realizar este texto evangélico. São-lhe atribuídas algumas curas. Mandou os seus frades que tivessem especial preocupação com os doentes da Ordem, diante de cuja necessidade todas as observâncias deviam ceder.
Mas, sobretudo, é conhecida a sua actuação com os leprosos. Foi numa leprosaria que se ultimou a sua conversão, como ele mesmo conta no Testamento:
"Quando eu ainda estava envolto em pecados era-me muito amargo ver os leprosos; mas o Senhor me conduziu ao meio deles e tratei-os com misericórdia. E, ao afastar-me deles, aquilo que me era amargo tinha-se-me convertido em doçura para a alma e para o corpo".
vers. 8b – “Dai de graça, o que de graça recebestes”.
Este um dos versículos que não se encontra nos outros dois Evangelhos sinópticos. É, portanto, exclusivo de Mateus. Sobre este ponto, é famosa, no Novo Testamento, a polémica de S. Paulo. Ele reconhece o direito que lhe assiste de viver do seu ministério:
"Assim também ordenou o Senhor que aqueles que anunciam o Evangelho, vivam do Evangelho" (1 Cor 9,14). Ele bem sabe que este princípio é uma aplicação da lei geral do Antigo Testamento, onde, "os que servem ao altar, participam do altar (1 Cor 9,13). No entanto, Paulo nunca usou deste seu direito (Act 20,32), pregando gratuitamente o Evangelho (2 Cor 11,5). Isto para dar "exemplo" de trabalho (2 Tes 3,9) e "a fim de não criar qualquer obstáculo ao Evangelho de Cristo" (1 Cor 9,12).
S. Francisco renuncia também ao seu direito. Permite aos frades que recebam coisas pelo seu trabalho, "excepto dinheiro ou pecúnia" (2ª Regra, V), mas proíbe-lhes que o exijam. Por isso, se não Ihes derem o salário, devem ir pedir esmola (2ª Regra, VI; Testamento, 6).
Francisco, certamente não ignorava a norma bíblica de que "o operário é digno do seu salário" (1 Tim 5,18) e de que pairam graves ameaças sobre aqueles que o defraudam (Tg 5,4), mas no seu amor à pobreza, foi muito mais além daquilo que é exigido pela Bíblia. Ultrapassou o próprio S. Paulo, porque não renuncia apenas ao salário devido ao ministério: quer que os seus Irmãos estejam dispostos a renunciar a todo o salário, seja qual for o género de trabalho prestado.
Não admira que, quando mais tarde, no tempo de S. Boaventura, rebentou na Universidade de Paris a polémica entre os mendicantes e os seculares, estes acusassem aqueles de quererem ser mais perfeitos do que o próprio Cristo e os apóstolos. Com efeito, o grupo apostólico tinha bolsa, cujo tesoureiro era Judas, e eles nem bolsa queriam.
vers. 9 – “Não procureis nem ouro, nem prata, nem cobre para os vossos cintos;”
vers. 10 – nem alforge para o caminho, nem duas túnicas, nem sandálias, nem bastão, porque o operário é digno do seu alimento”.
A Didaké confirma-nos a existência de varões apostólicos que iam de terra em terra a instruir, a consolar e a exortar os cristãos. Vemos, aí, uma das pedras de toque fundamentais para avaliar se esses profetas eram verdadeiros ou falsos: se pediam dinheiro ou não.
Outra das características destes missionários era o desinteresse pelas coisas deste mundo, temperado pela confiança na divina Providência. A total ausência de ambição, o exercer o seu ministério exigindo apenas alimento, era sinal certo da sinceridade do mensageiro.
O próprio vestido devia reduzi-lo ao mínimo: não levar duas túnicas, não só para não ir com uma vestida e outra de reforço no saco, mas, sobretudo, porque para entrar no Reino de Deus, é preciso partilhar os bens (Lc 3,11), dando a outra a quem não tem.
Quanto ao calçado, é curioso que o texto de Marcos manda ir calçados de sandálias. Pedro, quando foi preso em Jerusalém, levava sandálias (Act 12,8). É natural que, fora da Terra Santa, em regiões frias, isto fosse uma necessidade inapelável.
Francisco de Assis quis que a sua Ordem vivesse à letra estes dois versículos do Evangelho. Deste modo eles encerram os preceitos fundamentais da Regra Franciscana. Assim verifica-se um fenómeno curioso: enquanto as Regras monásticas eram severas nos jejuns e nas abstinências, Francisco, seguindo o Evangelho, permite aos seus frades "comer de tudo" e mitiga o jejum monacal (Regra, III); é, porém, muito rigoroso ao tratar-se das vestes (Regra, II), precisamente por estarem em causa os versículos evangélicos que estamos a comentar.
Mas, onde Francisco excedeu todos os limites foi no referente ao uso do dinheiro. Aqui a sua intolerância foi radical. Neste ponto, não influíram apenas motivos teológicos; devem ter entrado também em jogo razões sociológicas. No seu tempo, principalmente em Itália, verificava-se o ocaso do feudalismo, sistema baseado na posse da terra, e alvoreava o pré-capitalismo, sistema fundamentado no dinheiro. Francisco, filho dum destes neo-burgueses, experimentou como o dinheiro se ia tornando um poderoso instrumento de exploração do homem pelo homem. Este Irmão Menor, que abominava a exploração, que se sentia Irmão de todos, quis riscar da face da terra o dinheiro, a arma mortal dos opressores. Por isso, é que um Franciscano jamais poderá ser capitalista.
O santo desejava que os seus irmãos tratassem o dinheiro como autêntico lixo. E Celano conta-nos como ele obrigou um frade a apanhar uma moeda com a boca e a ir deitá-la sobre um monte de esterco de cavalo, só porque esse dito frade lhe havia tocado, arremessando-a para um canto (Vida Segunda, 65)
vers. 11 – “Em qualquer cidade ou aldeia em que entrardes informai-vos de quem nela haja digno e permanecei lá até que saiais”.
O texto da Didaké, que referimos, supõe que havia quem abusasse da hospitalidade, aproveitando-se do Evangelho para comer e beber à custa dos outros. Por isso diz: "seja recebido como o Senhor; mas não ficará senão um só dia; e, se houver necessidade, também o seguinte; se ficar três dias, é falso profeta". Certamente por isso, o texto paralelo de S. Lucas ordena: "Não andeis de casa em casa".
Quanto aos Frades Menores, a Lenda dos Três Companheiros conta-nos o seguinte: "Muitos dos que os viam e ouviam tomavam-nos por burlões ou tolinhos, e recusavam, às vezes, admiti-los em suas casas, com medo de que fossem ladrões e lhes roubassem ocultamente as coisas. Este era o motivo pelo qual, em muitos sitios, depois de recebidas muitas injúrias, se viam obrigados a albergar-se nos pórticos das igrejas ou das casas" (n. 38).
vers. 12 – “E, ao entrar na casa, saudai-a”.
vers. 13 – “E se essa casa for digna, que a vossa paz venha sobre ela; mas se não for digna, que a vossa paz volte para vós”.
Em referência a esta ordem do Senhor, é que S. Francisco afirma, no Testamento: "E esta saudação me revelou o Senhor que disséssemos "O Senhor te dê a paz".
vers. 14 – “E se alguém não vos acolher, nem escutar as vossas palavras, saindo dessa casa ou dessa cidade, sacudi o pó dos vossos pés”.
vers. 15 – “Em verdade vos digo: haverá menos rigor para a terra de Sodoma e de Gomorra, no dia do juízo, do que para esta cidade”.
O gesto de sacudir o pó contra os que se recusavam a receber os enviados de Deus é-nos referido pelo menos duas vezes, no livro dos Actos, praticado por S. Paulo e os seus companheiros: uma vez em Antioquia da Pisídia (Act 13,51) e outra em Corinto (Act 18,6), terras onde os judeus da diáspora se recusaram a acreditar.
Sodoma e Gomorra, cidades pecadoras, que violaram as leis sagradas da hospitalidade, abusando duns peregrinos que aí chegaram (Gn 19,24), são na Bíblia o símbolo do juízo de Deus (Ez 16,48; Lc 17,29; Rom 9,29; 2 Ped 2,6; Jd 7).
S. Francisco, com o seu temperamento tão manso, não consta que tenha praticado este versículo do Evangelho. Mais ainda, ele queria que os Frades evitassem impor-se por qualquer privilégio, mesmo em caso de perseguição. Deste modo, manda o seguinte:
"Mando firmemente por obediência a todos os Frades, em qualquer parte onde se encontrem, que não se atrevam a pedir nenhum privilégio à Cúria Romana, nem por si mesmos, nem por intermediários, nem para uma igreja, nem para um lugar, nem com pretexto de pregação, nem por serem perseguidos; mas onde não forem recebidos, fujam para outra terra, a fazer penitência com a bênção de Deus".
Francisco de Assis tinha as portas abertas a todos e o coração ainda mais, ao ordenar: "Em qualquer local que morem, sejam ermos ou outras partes, guardem-se os Frades de se apropriarem ou de defenderem algum lugar; assim, quem aí chegar, seja amigo ou inimigo, ladrão ou salteador, deve ser recebido com benignidade" (1ª Regra, VIII).
vers. 16 – “Eis que vos envio como ovelhas para o meio dos lobos. Sede, pois, prudentes como as serpentes e simples como as pombas”.
Pela sua mansidão, os discípulos de Cristo são ovelhas no meio de lobos vorazes. Esta imagem aparece outras vezes na Escritura (Mt 7,15; Jo 10,12; Act 20,29).
A mansidão, a simplicidade e a bondade dos mensageiros do Evangelho "no meio dos lobos", não significa "deixar-se comer as papas na cabeça". Por isso, essas virtudes são compatíveis com a prudência e a astúcia proverbiais das serpentes (Gn 3,1), que sabem fugir da ira que as ameaça (Lc 3,7).
O santo de Assis distingue-se especialmente neste particular. Em plena Idade Média, quando os cristãos teimavam em impor o Evangelho pelas armas das Cruzadas, Francisco desarma com o Evangelho. É ele o primeiro a fundar uma Ordem missionária, a mandar os seus discípulos pelo mundo a anunciar o Evangelho. Ele próprio vai até à Terra Santa, sem outra arma a não ser a palavra de Deus e fala ao Sultão e aos seus nobres da fé em Cristo (Florinhas, XXIII; CELANO, Vida Primeira, 55). E quando soube do martírio dos cinco protomártires de Marrocos, exclamou: "Agora tenho cinco verdadeiros Frades Menores!".
Francisco de Assis fundou as Missões, em sentido moderno, convencido que evangelizar não é impor à força uma cultura e um espírito de vida, mas oferecer gratuita e pacientemente a salvação em Cristo. Ele mandou realmente os seus Frades como cordeiros para o meio dos lobos, numa época em que a Igreja se tinha realmente esquecido deste quadro evangélico.
Com este facto notável no deixará de andar ligada a lenda do lobo de Gúbio (Florinhas, XX) e de Greccio (S. Boaventura, Legenda II).
*Artigo publicado originalmente na Revista BÍBLICA nº 125 (julho/agosto 1976), pp. 188-192.