Introdução
A Bula de Canonização é a exaltação das virtudes de Santa Clara, “um hino apaixonado à vida de Clara” [1]. A sua vida é recordada nos passos principais e os seus milagres são proclamados a toda a Igreja.
Alguns autores alvitram que a bula já estava escrita no tempo de Inocêncio IV [2]. Mas não restam dúvidas que foi Alexandre IV que canonizou a santa a 15 de Agosto de 1255 [3].
Tivemos presente o texto latino do Arquivo do Castelo de Santo Ângelo, nos Arquivos do Vaticano, publicado por Lazzeri. O texto que Lazzeri encontrou, fazia parte dum fascículo de cinco pergaminhos com as bulas de canonização de São Edmundo de Cantorbery e de São Pedro Mártir, canonizados a 16 de dezembro de 1246 e a 19 de Maio de 1253, respectivamente. Este exemplar tem a data de 26 de setembro, havendo outros exemplares com a data de 19 de Outubro, datas da expedição dos documentos. Parece ser uma das várias cópias do original que se perdeu [4].
Bula de Canonização de Santa Clara
Alexandre [5], bispo, servo dos servos de Deus, a todos os veneráveis irmãos Arcebispos e Bispos do reino de França [6] saúde e bênção apostólica.
Clara, resplandecente [7] em claros méritos, brilha no céu com claridade de insigne glória e na terra com esplendor de sublimes milagres. Aqui cintila a austera e sublime Ordem de Clara, difunde-se até ao alto a luz do seu prémio eterno e a sua virtude manifesta-se aos mortais com sinais magníficos.
1 Clara recebeu na terra o privilégio da altíssima pobreza [8]; no céu foi-lhe concedida inestimável abundância de riquezas; e todos os católicos a veneram com a homenagem de grande devoção e altíssimas honras. Na terra resplandeceu Clara com as suas luminosas obras. No céu irradia Clara a plenitude da luz divina. E o povo cristão exalta-a pelas maravilhas dos seus milagres.
2 Clara bendita, adornada com tantos títulos de claridade [9]! Clara fostes antes da conversão, e mais clara ainda depois dela. Foste preclara na vida claustral e manifestaste-te com toda a claridade depois de deixares a vida presente. Em Clara pode este mundo ver um diáfano espelho de bons exemplos; nela nos é oferecido o lírio da virgindade com um encanto celestial; através dela experimentamos na terra os remédios do socorro sobrenatural.
3 Admirável claridade de Santa Clara cujo esplendor de vida quanto mais se analisa, mais admirável se reconhece. Se já luzia no século, resplandeceu na vida religiosa. Se na casa paterna foi um raio luminoso [10], no claustro brilhou com todo o fulgor. Se brilhou na terra, resplandeceu no céu.
4 Como era grande a força desta luz e como era forte a claridade do seu brilho! Apesar de encerrada no segredo do claustro, esta luz irradiava para o exterior; embora recolhida entre paredes de um mosteiro, esta luz era projectada para todo o mundo; protegida no interior, irradiava para o exterior. Escondia-se Clara, mas patenteava-se a vida. Calava-se Clara, mas era proclamada a sua fama. Apesar de escondida na sua cela, a sua vida era conhecida nas cidades [11].
5 Tal coisa não nos deve espantar. Como podia uma lâmpada tão clara e resplandecente permanecer sem alumiar com todo o esplendor a casa do Senhor? Como podia permanecer cerrado um vaso de tão preciosos perfumes, sem exalar o seu aroma na mansão divina? Quanto mais alquebrava o vaso de alabastro do seu corpo em recôndita solidão, tanto mais o odor da sua santidade perfumava a Igreja [12].
6 Assim foi desde a juventude, quando ainda estava no mundo [13]. Desde a primeira infância que desejou passar sem mancha por este mundo efémero e impuro. Guardou sempre com pudor imaculado o tesouro precioso da sua virgindade e era tão assídua na prática das obras de caridade e piedade que depressa o seu nome ultrapassou as fronteiras em redor [14]. Daí que São Francisco, conhecedor da sua fama, cedo a exortou a seguir a Cristo na caridade perfeita [15].
7 Não demorou muito a seguir estes santos conselhos. Ansiava renunciar quanto antes ao mundo e a todas as coisas terrenas, para servir só a Deus em pobreza voluntária. E procurou realizar este desejo o mais depressa possível. Assim, distribuiu todos os seus bens em socorro dos pobres, para juntamente consigo, tudo ofertar a Cristo.
8 Quando abandonou o bulício do mundo, refugiou-se numa capela, onde Francisco lhe cortou os cabelos [16]. Dali foi para outra igreja onde os parentes a procuraram para a demover dos seus intentos [17]. Mas ela abraçou-se ao altar e, desapertando o véu, mostrou-lhes a cabeça tonsurada. Resistiu com firmeza aos propósitos dos parentes [18]. Totalmente unida a Deus, não podia consentir que fosse arrancada ao seu serviço.
9 Finalmente São Francisco transferiu-a para a capela de São Damião, nos arredores de Assis, sua cidade natal [19]. Para ali o Senhor lhe enviou muitas companheiras a fim de viverem o amor e celebrarem o seu nome. Ali nasceu a insigne e santa Ordem de São Damião [20], já amplamente difundida por todo o mundo. Ali, seguindo o conselho de São Francisco, ela deu início e seguimento a esta nova e santa forma de vida. Ali se colocou o primeiro e sólido fundamento desta grande Ordem e se lançou a primeira pedra desta grandiosa obra.
10 Nobre de estirpe e ainda mais nobre de vida, conservou, como fundamento desta regra de santidade, a virgindade que ela já antes observava. Mais tarde também sua mãe, Hortolana [21], muito dedicada a obras de caridade, quis seguir os passos da filha e abraçou piedosamente esta Ordem, e aqui terminou, feliz, os seus dias, qual ótima jardineira que produziu tal planta no jardim do Senhor. Poucos anos depois, cedendo aos apelos de Francisco, Clara aceitou o cargo do governo do mosteiro e das irmãs [22].
11 Ela foi a árvore nobre e distinta, de ramagem frondosa, que, plantada no campo da Igreja, produziu doces frutos de santidade. De todas as partes acodem almas sedentas de santidade à procura de sombra reconfortante e saborosos frutos. Ela foi o manancial puro do vale de Espoleto que nos ofereceu uma fonte de água viva para alívio e proveito das almas, fonte que, correndo em vários fios de água pelo campo da Igreja, alimenta e faz florir a vida religiosa [23].
12 Ela foi o alto candelabro de santidade, que resplandece vigorosamente na casa do Senhor, a cuja chama viva acorreram e acorrem numerosas virgens para nela acenderem as suas lâmpadas [24]. No campo da fé, ela plantou e cuidou a vinha da pobreza [25], onde cresceram viçosos e ricos frutos de salvação. No campo da Igreja cultivou o jardim da humildade [26], marcando os limites com toda a espécie de provações, mas onde brota grande riqueza de virtudes.
13 Construiu no território da santidade a fortaleza da rigorosa abstinência, onde é oferecido abundante alimento espiritual. Ela foi porta-estandarte dos pobres, guia dos humildes, mestra das continentes e a abadessa das penitentes. Governou o mosteiro e a fraternidade que lhe estava confiada com solicitude e prudência, no temor e serviço do Senhor e na plena observância da Ordem. Era vigilante, cuidadosa e zelosa no seu ministério; atenta para estimular e diligente no aconselhar; moderada no corrigir e serena no mandar; sempre disposta a compadecer-se; discreta pelo silêncio, prudente nas palavras e conhecedora de tudo o que é necessário para um governo acertado. Preferia servir a mandar e antes honrar que ser honrada [27].
14 A sua vida era para os outros instrução e doutrina. Nessa vida feita livro, aprenderam as outras o estilo de viver; neste espelho de vida, viam os outros o caminho da vida. Se estava fisicamente na terra, segundo o espírito já pairava no céu, ela que era vaso de humildade, guarda-joias de pureza, fogo de caridade, doçura de bondade, vigor de paciência, laço de paz e elo de comunhão fraterna. Com as outras irmãs, era suave nas palavras, branda no agir e sempre amável e delicada [28].
15 Sabia que quanto mais se enfraquece o inimigo, mais força se ganha. Por isso tratava mal o corpo, para fortalecer o espírito: o chão duro ou, de vez em quando, um colchão de ramos secos, servia-lhe de leito e, no lugar do travesseiro, colocava um madeiro áspero. E contentava-se com uma única túnica e um manto pequeno de pano grosseiro, pobrezinho e gasto. Com estas vestes humildes cobria o corpo, mortificando-o frequentemente com um rude cilício tecido de crinas de cavalo [29]. Mortificava-se no uso da comida e da bebida a tal ponto que durante muito tempo se abstinha de todo o alimento durante três dias da semana, segunda, quarta e sexta-feira. Nos restantes dias restringia o alimento ao mínimo, a ponto de as suas irmãs se admirarem de como conseguia subsistir com um jejum tão austero [30].
16 Passava a maior parte do tempo do dia e da noite em vigília e oração [31]. E quando, já enfraquecida por prolongadas enfermidades [32], não sentia forças para se levantar por si mesma, sentava-se no leito com a ajuda das irmãs e aí, protegida por almofadas, dedicava-se a trabalhos manuais. Assim, mesmo na enfermidade, combatia a ociosidade. Desejava que dos panos por ela trabalhados se fizessem corporais para o sacrifício eucarístico, que depois eram distribuídos pelas igrejas do vale e das montanhas de Assis [33].
17 Todo o seu espírito foi marcado pelo amor especial que consagrava ao cultivo da pobreza. De tal maneira se identificava com as suas exigências, que, amando-a mais que tudo e abraçando-a cada dia com maior ardor, dela se não separava, mesmo nas maiores necessidades. E mesmo quando o nosso predecessor, o Papa Gregório IX, de feliz memória [34], movido por piedade e compaixão, quis permitir que o mosteiro adquirisse suficientes propriedades [35] para garantir o sustento das irmãs, nada, nem ninguém, conseguiu demovê-la a aceitar tal proposta.
18 E assim como não se pode abafar os raios duma grande luz, assim também a sua santidade resplandeceu em muitos e variados milagres: devolveu a voz a uma das irmãs do mosteiro que havia muito a tinha perdido; o mesmo fez com uma irmã que sofria duma paralisia na língua [36]; a uma outra curou da surdez [37]. Com o sinal da cruz traçado sobre elas, libertou uma de febres, outra de hidropisia, uma de fístulas e de outras enfermidades [38]. Até curou um frade da loucura [39].
19 Certo dia esgotou-se por completo o azeite no mosteiro. A santa tomou uma bilha, lavou-a e colocou-a à porta do mosteiro. Depois chamou o irmão encarregado de recolher as esmolas e pediu-lhe para ir pedir azeite. Quando o irmão pegou na bilha já a encontrou cheia de azeite, graças à generosidade divina.
20 Noutra ocasião, não havia em São Damião mais que meio pão para todas as irmãs. Ela mandou distribuir esse meio pão por todas. E, por graça d'Aquele que é o pão vivo (Jo 6, 41) e dá de comer aos famintos (Sl 145,7), o pão multiplicou-se nas mãos da irmã despenseira e apareceram os cinquenta pedaços suficientes para alimentar as cinquenta irmãs do mosteiro [40].
21 Por estes e outros sinais extraordinários, se patenteou a excelência dos seus méritos. E quando entrou em agonia, foi vista uma multidão de virgens vestidas de branco, entre as quais se destacava uma de singular esplendor, as quais, em celeste cortejo, penetraram nos aposentos onde jazia a serva de Cristo e, acercando-se do seu leito, a acariciaram com gestos de afeto, a consolaram e confortaram com sua visita [41].
22 Depois da sua morte, um homem que sofria de epilepsia e tinha um joelho encolhido, foi conduzido ao túmulo da santa. Uma vez ali, sentiu um forte estremeção no joelho e ficou curado dos dois males. Doentes de rins, coxos e aleijados, epiléticos e até dementes, recuperaram totalmente a saúde. Um homem que tinha perdido totalmente o uso duma das mãos, devido a uma pancada fortíssima que apanhou e não podia fazer nada com ela, antes lhe era inútil, recuperou toda a agilidade na mão por intercessão da santa. Um outro que era cego havia muito tempo, levado ao túmulo da santa, ali mesmo recuperou a vista, regressando a casa sem guia [42].
23 Tais prodígios gloriosos e muitos outros que realizou de modo admirável, vieram confirmar a visão que sua mãe teve durante a gravidez, quando orava: que a criança que ia dar à luz seria como lâmpada que iluminaria o mundo inteiro [43].
24 Alegre-se, pois, a Madre Igreja que gerou e formou uma tal filha, a qual, por sua vez, mãe fecunda de virtudes, inspirou muitas seguidoras na vida religiosa, formando-as na perfeição do serviço de Cristo [44]. Rejubile também o povo fiel, por esta irmã e companheira que o Senhor e Rei dos Céus escolheu para esposa e introduziu triunfalmente no seu altíssimo e glorioso palácio. Rejubile também a multidão dos santos ao celebrar na pátria celeste as novas bodas da esposa do Rei.
É justo que a Igreja católica venere em toda a terra aquela que o Senhor exaltou nos Céus. Depois de investigação atenta e diligente, depois de detalhado exame e de sérias discussões, não obstante estes factos serem sobejamente conhecidos tanto aqui como noutros países e não existindo dúvida sobre a santidade da sua vida e sobre os milagres, ouvidos os nossos irmãos e prelados [45] que assistem à Sé Apostólica e com o seu assentimento, confiados nós na omnipotência divina, com a autoridade dos bem- aventurados apóstolos Pedro e Paulo e com a nossa própria autoridade, determinamos que seja inscrita no catálogo das santas virgens [46].
25 Por isso vos aconselhamos e exortamos e por esta carta apostólica mandamos, que celebreis com devoção a festa desta virgem no dia doze de agosto [47] e que a façais celebrar com toda a reverência pelos vossos súbditos, a fim de que possais contar diante de Deus com a sua piedosa e constante proteção.
E para incentivar as peregrinações do povo cristão ao seu túmulo, de modo a dar mais brilho à celebração da sua festa, confiados na misericórdia de Deus e na autoridade dos apóstolos Pedro e Paulo, concedemos um ano e quarenta dias de indulgência a todos quantos, arrependidos e confessados, visitarem o túmulo no dia da festa ou durante a oitava.
Dado em Anagni a 26 de setembro, no primeiro ano do nosso pontificado [48].
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[1] Schriften, p. 27.
[2] Untersuchungen, p. 330.
[3] LCL 62. Cf. De die canonizationis beatae Clarae, in A.F.H., 11 (1918), pp. 276-278.
[4] A.F.H., 13 (1920), pp.499-507. Cf. FREI MARCOS DE LISBOA, 3ª, pp. 280-282. Cf. BAC, pp. 115-116.
[5] Sobre Alexandre IV, cf. LCL, nota 1.
[6] A Bula de Canonização não foi dirigida a toda a Igreja, mas somente aos bispos e clero francês, porque a Cúria Romana residiu em França, mais concretamente em Lyon, de dezembro de 1244, até Abril de 1255 (cf. BAC, p. 116, nota 3. A numeração dos parágrafos está de acordo com as Fonti e Schriften, divergindo da numeração da BAC e dos Documentos.
[7] LCL 1.
[8] LCL 14.
[9] O jogo de palavras com o nome de Clara verifica-se em todo o documento.
[10] LCL 4; 6.
[11] LCL 10a; 11.
[12] LCL 10.
[13] LCL 3.
[14] LCL 4.
[15] LCL 5; 6.
[16] LCL 8.
[17] São Paulo de Bástia. LCL 8; 9.
[18] LCL 9.
[19] LCL 10.
[20] Talvez o nome primitivo da Ordem de Santa Clara.
[21] LCL 33.
[22] LCL 12.
[23] Ibid.
[24] LCL 10a; 11.
[25] LCL 13; 14.
[26] LCL 23.
[27] LCL 36; 38. Clara é aqui apresentada como modelo de superiora duma comunidade religiosa.
[28] TCL 21-23.
[29] LCL 17.
[30] LCL 18.
[31] LCL 19.
[32] LCL 17.
[33] LCL 28; RCL VI, 1.
[34] Sobre o Papa Gregório ver LCL, nota 39.
[35] LCL 14.
[36] LCL 35.
[37] Ibid.
[38] LCL 34; 35.
[39] LCL 32.
[40] LCL 16.
[41] LCL 46.
[42] LCL 49-59.
[43] LCL 2.
[44] BCN 13.
[45] Conhece-se o nome de um dos Cardeais presentes e inclusivamente o texto da sua intervenção. Trata-se do Cardeal Frederico Visconti que mais tarde havia de ser bispo de Pisa. LAZZERI encontrou o texto na Biblioteca Laurentina de Florença e publicou-o no A.F.H., 11 (1918), pp. 276-279. Cf. p.
[46] LCL 62.
[47] Cf. nota 103 da LCL. A festa de Santa Clara começou por celebrar-se a 12 de Agosto, porque a 11, dia do seu falecimento, se celebrava a festa de São Rufino, padroeiro de Assis. Cf. Schriften, p. 85, nota 147.
[48] Ano 1255.