Celebramos 25 anos do “Espírito de Assis”, mas poderíamos dizer que já lá vão muitos mais anos, desde que esse Espírito sopra em Assis e irradia da cidade de Francisco.
É, de facto, oportuno recordar que o “Espírito de Assis” encontra as suas raizes inspiradoras e renovadoras no gesto profético de S. Fancisco que, no ano de 1219, deixou sua cidade de Assis para ir ao encontro dos irmãos muçulmanos para lhes anunciar o evangelho da Paz. A 5 de novembro assistiu à tomada de Damieta por parte dos cruzados cristãos, depois de os ter tentado convencer a evitar a sangrenta batalha. Horrorizado com a crueldade do combate, pede e consegue da parte do sultão Malik al-Kamil uma audiência que parece não ter produzido grandes sucessos. As fontes narram, porém, que o coração do Sultão ficou tocado pela simplicidade do gesto e verdade das intenções do Poverello. Pouco tempo depois Francisco veio a saber que cinco irmãos seus tinham sido martirizados em Marrocos.
Num tempo em que muitos pregavam a cruzada e usavam a violência das armas em nome do Evangelho, Francisco teve a inspiração de propor outro caminho, ordenando, na sua Regra, que “os irmãos que vão para entre os Muçulmanos se devem comportar no meio deles do seguinte modo: não litiguem nem disputem mas sujeitem-se a toda a criatura humana por amor de Deus e confessem ser cristãos”.
Mas haveria que lembrar mais um acontecimento, de entre os muitos gestos de paz promovidos pelo Santo de Assis, para melhor percebermos o motivo pelo qual Assis aparece associada ao renovamento do Espírito de Paz promovido pelo Papa João Paulo II e continuado pelo atual Pontífice, Bento XVI.
Contam as fontes franciscanas que, pelo ano 1225, entre o bispo de Assis e o podestà da cidade “nasceu uma feroz contenda”, ao ponto de o primeiro ter excomungado este último. Francisco, triste e indignado sobretudo por ver que ninguém fazia algo para restabelecer a paz entre os dois, decidiu intervir. Envolveu então seus irmãos para que convidassem bispo e podestà e muita gente da cidade para celebrarem um encontro de reconciliação. Compôs, para essa circunstância, mais uma estrofe do seu Cântico do Irmão Sol que reza assim: “Louvado sejas tu, meu Senhor, por quem perdoa por teu amor; por quem sofre provações e doença; feliz quem as suporta em paz, porque será por ti, Altíssimo, coroado!” Deu-se o encontro, em que os frades cantaram esta estrofe e, e a paz foi restabelecida. Graças à poesia espiritual de Francisco e à música da fraternidade, a praça de Assis tornou-se um palco de paz.
Evoco estes episódios e as palavras de Francisco para recordar – caso fosse necessário - que é o mesmo Espírito que moveu Francisco a transpor fronteiras para dialogar com os “da outra margem” ou que o moveu a interferir (ele e seus frades) em tantas situações de contenda entre pessoas, poderes e instituições, que está na génese do “espírito de Assis”.
João Paulo II, inspirando-se na ousadia evangélica dos gestos e palavras do Santo de Assis, quis fazer renascer das cinzas de um século marcado por guerras e intolerância esse Espírito pentecostal que nos convoca ao encontro e ao diálogo para a paz. Momentos como os que se foram repetindo ao longo dos dois últimos pontificados, em Assis e por todo o mundo, as múltiplas “Celebrações” e “Jornadas do Espírito de Assis”, ao longo destes 25 anos, constituem já um indestrutível património da humanidade.
No entanto, olhando para este passado do “espírito de Assis”, muitos se perguntam pelo seu futuro. Depois do 11 de setembro de 2001, perante a estratégia do terror promovida por alguns grupos fundamentalistas, face aos confrontos cada vez mais frequentes como os que sucederam há dias no Egito entre cristãos e muçulmanos, que resultaram em 24 mortos e mais de 200 feridos, muitos perguntam que sentido faz continuar a promover o “Espírito de Assis”. Porquê continuar a acreditar no diálogo e a promover encontros entre as religiões, quando se mostram tão precários os frutos daquele gesto de S. Francisco ou, daquelas jornadas de esperança promovidas desde o já distante 27 de outubro de 1986? Poderíamos ir mesmo mais longe: Que significa celebrarmos o “Espírito de Assis” quando no seio dos cristãos e até da própria Igreja católica há rivalidades incuráveis, conflitos e as divisões que se agravam em vez de se dissiparem? Uns querem-se apoderar do “espírito de Assis” como “frase feita” ou fórmula mágica para tudo e para nada, outros olham para esta causa com grande suspeita, chegando mesmo a considerá-la uma cedência à ideologia relativista e ameaça à integridade da fé da Igreja. E já se ouvem até vozes que propõem, em vez desse “espírito” de paz e diálogo, a via “mais eficaz e realista” do regresso ao espírito de cruzada. E parecem falar cada vez mais alto os herdeiros daqueles que já se tinham escandalizado com o gesto corajoso do Beato João Paulo II, quando convocou todas as religiões do mundo a rezarem juntas, cada uma na sua fé e liturgia, pela paz.
Mas porque ter medo do movimento do Espírito? Francisco ensina, na sua Regra, que «nada mais devemos buscar senão ter em primeiro lugar o Espírito do Senhor e deixar-nos guiar por Ele». O “Espírito” de Assis não é, pois o espírito de Francisco ou de qualquer outro homem, Ordem ou instituição: é o Espírito de Deus e, portanto, o Espírito de toda a Igreja e humanidade, sem ser monopólio de ninguém. Se não é esse Sopro de Deus que nos move, não iremos a lugar algum. Também não iremos muito longe se antepusermos o preconceito à caridade. Francisco olhou o Sultão do Egito com estima (cum aestimatione), reconhecendo que “adorava o único Deus, vivo, misericordioso e omnipotente, criador do Céu e da terra, que falou aos homens”. Cientes estamos, porém, de que o diálogo é o caminho, não é o termo: Francisco dialogou com os cruzados para que depusessem as armas, e com o Sultão para que aceitasse o Deus de Jesus Cristo. Enquanto tal, o diálogo inter-religioso nunca se poderá confundir com sincretismo nem irenismo político, pois os buscadores da Paz só poderão seguir o trilho da conversão ao Senhor da Paz. Por outro lado, os resultados alcançados não podem ser avaliados pela eficácia imediata ou por critérios humanos, pois o “o Espírito sopra quando quer”: o mundo parece não ter mudado muito depois de Francisco ou de João Paulo II. Mas quantos mundos não mudaram graças a estes e outros instrumentos do Espírito?
Não há, pois, que ter medo dos que são movidos por esse Espírito, devemos é perguntar, que espírito nos move a nós. O “Espírito de Assis” poderá ter até outros nomes, mas não muitas alternativas. Só percorrendo o caminho da paz, estamos a “estamos no caminho certo, porque estamos no caminho do Deus da paz” (Bento XVI). Por isso, não existe um caminho para o diálogo: o caminho é o diálogo; assim como não há uma via para a paz: a via é a própria Paz. O diálogo, entendido como caminho de encontro e discernimento da Verdade não é, para o cristão, opcional, mas exigência da própria fé que nos diz que homem algum ou situação humana alguma nos é estranha ou indiferente, muito menos quando há sofrimento e injustiças alimentados em nome de Deus.
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