Quinta-feira Santa
PÁSCOA-MEMORIAL
Êxodo 12,14; 1 Coríntios 11,23-26
Houve ali tradição: era de Páscoa
o jantar com os teus. Eras seu Mestre.
Mas o amor foi maior, e a novidade,
pois um Novo nascia do Primeiro.
Era o tempo e o modo da Aliança–
–Testamento, assinada no teu Sangue
para ser derramado, e no teu Corpo
todo entregue em festim na Eucaristia
até vires de novo. Hoje vimos
celebrar em memória da tua Páscoa.
E queremos não tanto recordá-lo
mas vivê-lo na entrega que nos pedes
e adiamos. De amor imensurável,
foi teu gesto. Uma vez, e foi bastante:
dessa fonte é que mana, ainda hoje,
nossa vida; e nós, nem assim te damos
o que somos! Por isso repetimos
tantas vezes o mesmo sacrifício
que só Tu, na verdade, suportaste.
Em memória de ti seria, hoje,
suar sangue e sofrer como sofreste,
ó Cordeiro pascal. E nós passamos
(passo eu) toda a vida recordando,
sem sair do presente, sem que o hoje
enraíze um futuro no passado,
em que seja a passagem não um porto
mas a ponte que ligue à Nova Terra
só no fim alcançada. Eis a Páscoa
cada ano sonhada de lembrada,
mas no dia seguinte, como os sonhos,
bem depressa esquecida. Páscoa nova,
que em meu corpo e meu sangue és Aliança.
* * * * *
“FAZIA-SE NOITE”
João 13,30; Efésios 5,8-14
I
João evangelista não fala, como os Sinóticos,
da Eucaristia no decorrer da Ceia, antes da Páscoa.
Em Cafarnaum, Jesus prometera, com escândalo
de muitos, dar a sua carne a comer e o seu sangue
a beber; para o evangelista João, o logos-palavra
de Jesus, se prometida, era já palavra cumprida.
Mas, no seu texto da Ceia, bate o coração de Cristo
jovem, na sua entrega de amor extremo, quando
a Passagem certa é iminente, a morte se entretece
com palavras poucas, mas ternas e ardentes,
e o tempo é cumprido em gestos de despedida:
Ele, o Mestre, lava os pés aos discípulos-apóstolos,
testemunhando o serviço e o mandamento novo.
Ele, o Amigo, partilha com Judas o bocado de pão
molhado no prato, que na ceia se dava ao amigo,
e previne-o do risco evitável-urgente da entrega,
como quem sabe de tentações suportadas e vencidas.
«Tomando o bocado de pão, saiu logo. Fazia-se noite» –
sublinha o evangelista João sobre Judas, em exclusivo.
Alusão à luta final entre os poderes das trevas e a luz
– dizem os biblistas entendidos, explicando o versículo.
«Esta é a vossa hora e o domínio das trevas» – diz-lhes
Jesus. A hora em que os filhos das trevas, mais astutos,
irão vencer os filhos da luz? Aparentemente.
II
Sabemos que, no princípio, «a Luz brilhou nas trevas,
mas as trevas não a receberam.» E que, no fim, a Luz
venceu as trevas do sepulcro, quando o mesmo Jesus,
que era a Luz, ressuscitou para sempre. «E as trevas
não lhe resistiram» – como diz João. Mas recordemos.
Jesus bem o dissera e prevenira, nas suas parábolas.
Agora... «Levantai-vos! Vamos! Já se aproxima aquele
que me vai entregar.» As trevas aproximam-se da Luz,
com archotes. À pergunta: «Quem buscais?» ficam cegas,
são derrubadas, quando a Luz responde: «Jesus sou eu.»
Judas perde-se na noite do desencanto, porque o Mestre
não dera luta aos soldados. Deus brilha de outro modo:
a sua luz não encandeia nem se impõe à visão: ilumina.
Os apóstolos, acobardados, fogem. Pedro tenta a espada,
mas cede junto da fogueira e da criada, sem luz própria.
O pescador da Galileia, que lançava as redes na escuridão,
agora perde o pé num copo de água cheio pelo seu medo.
Judas, um sicário, sucumbe num laço atado ao pescoço.
Mas de novo a Luz brilha nas trevas: o olhar do Mestre
ateia a cinza nos olhos de Pedro – que ardem e choram.
III
Fazia-se dia. Entre a Ascensão e o Pentecostes,
à luz da Páscoa, na mesma sala do Cenáculo,
Pedro preside ao grupo de crentes unidos em oração.
Fazem memória, tiram lição do passado para a vida.
Escolhido pelo Espírito, Matias substitui Judas suicida.
IV
Fica a noite vencida? A noite é feita pelo dia.
E há muitas outras noites pelos séculos fora,
como a sentinela esperando pela aurora:
noite da dúvida, noite da fé e dos sonhos perdidos,
noites à cabeceira do moribundo, noites de insónia,
noite dos sentidos, noite de Israel no Exílio velada
pelo profeta Isaías 42,18-25; 43,22-28; 50,1-3.
E a noite mística de S. João da Cruz, que resiste
como as virgens prudentes em vigília infindável,
“embora seja noite”. “E é de noite”, confessa.
É de noite quando os Apóstolos, sem o seu Mestre,
não pescam nada. É de noite em Agostinho de Hipona,
de escola em escola, de ser em ser, pelo roteiro das
criaturas, buscando Deus sem encontrá-lo: “Não sou
o teu Deus. Mas foi Ele quem me fez”, lhe dizem.
É de noite nos olhos e no espírito de Francisco de Assis,
em S. Damião e no Alverne, quando os Irmãos Menores
se afastam do primitivo amor de pobreza e humildade
segundo o Evangelho. E é de noite em Teresa de Ávila,
vinte anos rezando o Pai-Nosso a um Pai distante, calado.
É de noite no irmão Carlos de Foucauld: «Aridez e trevas;
tudo me é penoso. Mesmo dizer a Jesus que o amo.
Se ao menos eu sentisse que Jesus me ama! Mas Ele
nunca mo diz.» E é morto pelo jovem Sermi Aga Tora,
que lhe aponta a arma sem saber usá-la. Como Judas.
É de noite no ‘Diário’ de Teresa de Calcutá, por muitos
iliteratos da “noite escura” lido como a sua perda de fé.
E é de noite, embora a luz artificial, quando na cidade
as ruas se iluminam e avançam os crimes e deboches
voltando as costas ao Nascente e às nascentes, donde
podia vir-lhes o sentido. O mundo morre com saudades
de Deus dentro da noite, enquanto presume dispensá-Lo.
V
Noite propícia para um novo Génesis: “Faça-se a Luz!”
Noite acesa pelos anjos, cantando paz: “Nasceu Jesus!”
Noite-Mãe da Luz mais bela: “A Luz de Cristo!”
«Éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor: procedei
como filhos da luz – em bondade, justiça e verdade.»
VI
«Luz esplendente da santa glória do Pai celeste,
imortal, Santo e glorioso Jesus Cristo!»,
cantamos nas Primeiras Vésperas, cada domingo –
o oitavo Dia que Deus fez, sem mais ocaso,
e é Sol de luz e vida, mesmo em dia escuro:
«Dissipais as trevas do universo
e iluminais o espírito do homem,
vencendo a noite com a luz da fé.»
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