«POR TI MESMO»
Mateus 16,13-16
I
Muita coisa de Ti me disseram,
como quem Te soubesse por inteiro:
Servo, Redentor, Messias, Rei, Profeta, Salvador,
Filho de Deus, Cristo, Filho de Maria, Jesus, Mestre,
Amigo, Senhor, Deus de Deus, Luz da Luz, Irmão,
Gerado, não criado, consubstancial ao Pai, Arquétipo
da Criação, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.
Ouvi-o em catequeses, lições de filosofia e teologia,
exegeses de sagrada escritura, estudos de patrística,
traduções de herméticos dogmas, conceitos e códigos
para linguagem comum do povo, oratória sagrada,
moderna linguagem audiovisual e dinâmica.
Repeti-o em jogos, poemas, artigos, livros, homilias,
autos, fotos, sermões, programas de rádio, cursos,
retiros, aulas, tempos de televisão, conferências,
conselhos, testemunhos, momentos de escuta,
de partilha e de silêncio, contemplação e canto...
… para no fim me perguntares de novo:
«E vós, quem dizeis que Eu sou?»
Como quem diz: E tu, por ti mesmo –
o que sentes, pensas e vives a meu respeito?
Quase como a Pilatos: «Dizes isso por ti mesmo,
ou porque outros to disseram de mim?»
II
Que diferença entre aprender e fazer,
existir e viver, conhecer e aceitar,
dar e receber, pregar e praticar,
ver e crer, contemplar e testemunhar!
A velha questão:
há o saber e o ser.
E o presumir que se é,
só porque se diz, ou faz, ou sabe.
III
Só sabemos
o que nos ficou na memória
depois de termos esquecido
o que aprendemos – diz-se.
De Jesus Cristo – digo eu –
só sabemos
aquilo que (re)vivemos
como discípulos.
IV
Volto ao desafio da tua pergunta,
dando um título a estas páginas:
em minha memória.
És Tu esta memória (a frase é tua),
seguidor incansável dos meus passos,
que me antecedes como quem procura.
E sou eu, que te lembro ou torno de novo presente
ao (re)ler a tua Palavra, celebrar a tua Páscoa,
evocar hoje a tua vida, como proposta.
Aceito responder-te, abrindo o álbum da intimidade
onde guardo a brisa da tua voz e a marca indelével
dos teus passos, desde aquele fim de tarde no Éden.
Quero dizer(-Te), apenas, o perfume
que em mim ficou de Ti, ao escutar-me por dentro,
sem buscar provas documentais dessa memória.
V
Direi como quem sabe de ternura,
escutando na pergunta a voz amada.
Direi como quem sabe de amargura.
Direi como quem sabe de passado
e nele encontra o modo do presente.
Direi como quem sabe de futuro.
Direi como quem sabe de esperança
e nela colhe as flores da promessa.
Direi como quem sabe de certeza.
Direi como quem pensa, quer e vive,
ou quem de novo sonha o já vivido.
Direi como quem lê, como quem reza.
Direi como quem grita boas-novas
ou diz aos malmequeres: “bem-Te-quero”.
Direi como quem ama: com verdade.
Direi como quem sorve, quase em êxtase,
o mel que nos meus favos fabricaste.
Direi, abelha-mestra dos meus dias:
VI
Tu és o que eu, sem Ti, nunca seria,
pois tudo o que hoje sou ficou marcado
por todos esses passos que, em teu Nome,
fizeram meu caminho aquém-das-águas.
Tu és Aquele em quem eu me revejo,
a cuja luz revejo toda a vida:
notícias e projetos e valores
e sonhos, deceções, desesperanças.
Tu és a referência do passado
que nunca teve data sem que nela
tivesses um lugar central: ou quando
obscuras profecias vislumbravam
um filho, herdeiro, rei, rebento, servo,
messias, redentor, filho de homem;
ou quando, mesmo às portas da tua vinda,
o arauto abria sendas no deserto;
ou quando, enfim, à luz da tua páscoa,
apóstolos, os quatro evangelistas
e Paulo descobriram que já eras
o Filho de Deus vivo… desde a infância!
Aí não tenho dúvidas: por muito
que os modos de falar e de escrever
de então não sejam hoje os nossos modos;
por muito que mudemos e moldemos
a escrita na cultura, dando à fala
os sons da vida toda – foi na Páscoa
que tudo renasceu e hoje renasce,
pois passas cada dia em minha vida.
* * * * *