O nome de Mateus vem na lista dos doze apóstolos de Jesus. Mas, como entrou nela? E qual a sua identidade? A pergunta não é retórica. Este artigo tem novidades.
Os nomes da discórdia
Mateus é, sem dúvida, um dos apóstolos mais famosos de Jesus. Segundo conta o próprio Evangelho de Mateus, dedicava‐se a cobrar os impostos. Eis o relato: «Jesus viu um homem chamado Mateus, sentado no posto de cobrança, e disse‐lhe: “Segue‐me.” E ele levantou‐se e seguiu‐o» (Mt 9,9‐11).
Mas o relato da vocação de Mateus sempre constituiu um problema, porque sabemos que o autor do Evangelho de Mateus (que escreveu cerca do ano 80) copiou essa cena do Evangelho de Marcos (escrito uns dez anos antes). E segundo Marcos, o cobrador de impostos chamava‐se Levi, não Mateus (Mc 2,14). Por que motivo, então, o Evangelho de Mateus mudou o nome do cobrador, e lhe chamou Mateus?
Desde há muito, os estudiosos propuseram uma explicação que parecia a mais lógica: Levi e Mateus são a mesma pessoa; Levi seria o seu nome, e Mateus, o seu apelido ou alcunha. Mas a coisa não é assim tão simples.
Em primeiro lugar, porque, quando o Evangelho de Mateus utiliza um apelido, esclarece‐o com a expressão «também chamado». Como quando diz, por exemplo: «Jesus, também chamado Cristo» (Mt 1,16); ou «Simão, também chamado Pedro» (Mt 4,18); ou «Judas, também chamado Iscariotes» (Mt 26,14). Desse modo faz‐nos saber que a pessoa tinha dois nomes. Mas quando diz unicamente “chamado”, é porque se trata do único nome dessa pessoa. Ora, é assim que ele designa Mateus. Portanto, este não pode ser um apelido de Levi.
O estranho desaparecimento
Em segundo lugar, porque estes dois nomes (Levi e Mateus) são de origem judaica. E no tempo de Jesus, quando uma pessoa tinha dois nomes, o segundo era de origem estrangeira. Assim ocorre, por exemplo, com «José, de apelido Barsabas» (At 1,23), «Simeão, chamado Níger» (At 13,1), «João, chamado Marcos» (At 15,37), Silas Silvano (1 Ts 1,1), ou «Jesus, chamado Justo» (Cl 4,11). Em todos estes personagens bíblicos, o primeiro nome é semita e o segundo é estrangeiro (grego ou latino). Tornava‐se, pois, difícil que alguém se pudesse chamar Mateus Levi.
Em terceiro lugar, porque, quando Marcos apresenta Levi como cobrador de impostos, identifica‐o como «filho de Alfeu» (Mc 2,14). Isto é, como alguém bem conhecido, cujo pai até era lembrado. E mais adiante, o próprio Marcos apresenta Mateus como outra pessoa, membro do grupo dos Doze (Mc 3,18), quer dizer, como um indivíduo diferente de Levi. Ou seja, para o evangelista Marcos, Levi era o cobrador de impostos, e Mateus o integrante da lista dos Doze.
Isto mesmo faz são Lucas no seu Evangelho: apresenta Levi e Mateus como duas pessoas diferentes (Lc 5,27 e 6,15).
Mas então, se Mateus e Levi eram duas pessoas diferentes, por que motivo o Evangelho de Mateus, ao narrar a vocação de Levi sentado no seu posto de cobrança, lhe muda o nome e chama‐lhe Mateus? A explicação é esta: Levi era, na verdade, um cobrador de impostos, natural de Cafarnaum, a quem, em certa ocasião, Jesus chamou para o seguir. Levi aceitou o convite, e durante um tempo foi seu discípulo. Porém, num determinado momento desapareceu do círculo dos seus seguidores. Que aconteceu? Porque desapareceu? Arrependeu‐se? Adoeceu? Morreu?
Um encontro inesquecível
Não o sabemos. Apenas conhecemos dois dados: a) que quando Jesus o chamou, «ele, deixando tudo, levantou‐se e seguiu‐o» (Lc 5,28), renunciando à sua rentável profissão; b) que organizou em sua casa uma refeição, em honra do Mestre, para a qual convidou muitos outros cobradores e gente de má fama (Mc 2,15‐17). Depois disto, Levi desaparece da história e não volta a ser mencionado no Novo Testamento.
Que Levi tinha recebido de Jesus um convite especial para o seguir, vemo‐lo no relato da sua vocação comparado com o de outros apóstolos importantes, como Pedro, André, Tiago e João.
De facto, a todos eles:
- Jesus encontrou‐os nas margens do mar da Galileia (Mc 1,16; 2,13);
- ao passar, aproximou‐se deles (Mc 1,16; 2,14);
- viu que estavam ocupados (Mc 1,16.19; 2,14);
- olhou para eles (Mc 1,16.19; 2,14);
- propôs‐lhe segui‐lo (Mc 1,17.20; 2,14);
- levou‐os a abandonarem o que estavam a fazer (Mc 1,18.20; 2,14);
- foi à casa deles (Mc 1,29; 2,15).
Este paralelismo significa, em linguagem bíblica, que o cobrador de impostos Levi de Cafarnaum foi, em certo momento, um verdadeiro discípulo de Jesus, favorecido com um convite privilegiado e pessoal, e fazia parte da categoria dos grandes. Mas, por alguma razão estranha, não pôde continuar no seguimento de Jesus. Ora, qualquer que tenha sido a causa da sua ausência, os primeiros cristãos não esqueceram a sua generosa resposta ao chamamento de Jesus, talvez pelo impacto social da sua conversão, na época, por ser um funcionário do governo. Por isso o relato da sua vocação ficou na memória da primitiva comunidade, mesmo quando ele já não fazia parte do grupo. E Marcos, que chegou a conhecer o relato, incorporou‐o no seu Evangelho.
Com um projeto oculto
Quando, uma década mais tarde, se escreveu o Evangelho de Mateus, o seu autor entendeu que não era conveniente incluir o nome de Levi naquela cena. Como referir alguém que, tendo deixado tudo para seguir Jesus, não figura na lista oficial dos Doze apóstolos? Decidiu, então, contar o episódio da vocação de Levi, mas colocando no seu lugar alguém que tinha permanecido com Jesus até ao fim. E elegeu Mateus. Foi assim que Mateus, um judeu de quem não sabemos mais que o seu nome, acabou por herdar a história vocacional e profissional do cobrador de impostos Levi.
Mas, por que motivo o evangelista escolheu precisamente Mateus, e não outro membro do grupo dos Doze, como Filipe, Bartolomeu, ou Tomé? Os autores propuseram várias explicações. Segundo uns, foi por acaso. Segundo outros, porque Mateus também era cobrador de impostos e ajustava‐se ao relato da vocação de Levi.
Mas a solução parece ser outra. O autor do Evangelho era judeu, e escrevia para uma comunidade de origem judaica. Ora, os judeus davam muita importância ao significado dos nomes, porque viam neles um simbolismo escondido, um programa de vida, uma caraterística da personalidade.
O próprio Evangelho de Mateus demonstra isto. Por exemplo, quando Maria engravida, diz que o seu filho se chamará Jesus (que significa “Deus salva”) porque salvará o seu povo dos seus pecados (Mt 1,21). Também diz que terá por nome Emmanuel (que significa “Deus connosco”) porque nele Deus estará presente connosco (Mt 1,23). Do apóstolo Simão, diz que se chamará Pedro (que significa “pedra”) porque sobre essa pedra se edificará a Igreja (Mt 16,18).
Ou seja: Mateus, como bom judeu, aproveita o sentido dos nomes para destacar a função e missão das personagens do seu livro.
Ensinamentos acumulados
Ora bem, o nome de Mateus (em grego = matháios), soa como a palavra “discípulo” (em grego = mathetés). E esta casualidade foi o que possivelmente levou o evangelista a eleger Mateus para substituir o cobrador de impostos Levi. Pelo seu nome, era quem melhor representava o projeto de discipulado.
Mas, porque se fixou o evangelista em alguém cujo nome soava a “discípulo”? Havia outros apóstolos cujos nomes também tinham significados relevantes, como André (“homem forte”), João (“Deus teve misericórdia”), ou Simão (“o que escuta Deus”). Porque escolheu Mateus, com o seu significado de “discípulo”? Aqui chegamos ao centro deste estudo: a razão foi porque um dos temas centrais de todo o seu Evangelho é o do discipulado. Mais do que nenhum outro, o Evangelho de Mateus destaca a importância de ser discípulos de Jesus, e propõe‐nos à comunidade cristã como exemplos e modelos.
Para comprová‐lo, notemos que Mateus é o Evangelho sinótico que mais utiliza o termo “discípulo” (73 vezes). É o único que usa o verbo “fazer discípulo”. E o que mais emprega o verbo “aprender”, importantíssimo para ser um autêntico discípulo.
Por outro lado, é o evangelista que mais sublinha o trabalho docente de Jesus na formação de discípulos. Todo o seu Evangelho está estruturado à volta de cinco grandes discursos ou catequeses, pronunciadas por Jesus, indicando com isso aos leitores que o seu livro é por excelência o do aprendiz de discípulo. Nenhuma outra obra do Novo Testamento destaca tantos ensinamentos e pregações como este.
Não entenderam a mais fácil
Para apreciar até onde interessa ao evangelista o tema dos discípulos, notemos uma característica sua muito curiosa.
Marcos, na sua obra, retrata os discípulos de maneira negativa: medrosos (Mc 9,32), intolerantes (Mc 9,38‐40), dubitativos (Mc 10,32), ambiciosos (Mc 10,35), de mente estreita (Mc 8,17), sem fé (Mc 4,40), incapazes de compreender os ensinamentos de Jesus (Mc 6,52). Com isto, pretendia mostrar que Jesus não tinha escolhidos os mais inteligentes e capazes do seu tempo, mas a gente simples e limitada; e portanto, qualquer pessoa podia segui‐lo.
Mateus, ao contrário, pensou que apresentando os discípulos de maneira negativa, quem ficava mal era Jesus, que como Mestre não teria sido capaz de formar bons discípulos. Além disso, queria mostrar aos seus leitores que ser um bom discípulo era essencial para a comunidade cristã; que o discípulo devia sobressair e dar bom exemplo aos outros. Por isso muda o enfoque: sempre que Marcos os descreve de maneira indecorosa, Mateus mostra‐os a uma luz positiva e favorável.
Por exemplo, segundo Marcos, quando Jesus contou a parábola simples do semeador, os discípulos não a captaram, e perguntaram‐lhe o que significava; Jesus diz‐lhes, com ironia: «Não compreendeis esta parábola? Como como compreendereis então todas a outras parábolas?» (Mc 4,10‐13). Um modo elegante de lhes dizer que eram torpes. Em Mateus, porém, os discípulos entenderam‐na, e só lhe perguntaram porque falava em parábolas (Mt 13,10).
Distraídos no caminho
Outro exemplo encontramo‐lo quando Jesus caminha sobre as águas. Segundo Marcos, eles «sentiram um enorme espanto, pois ainda não tinham entendido o que se dera com os pães: tinham o coração endurecido» (Mc 6,51‐52); três qualificações duramente negativas. No Evangelho de Mateus, pelo contrário, os discípulos não só compreenderam o simbolismo daquela caminhada sobre as águas, mas «prostraram‐se diante de Jesus, dizendo: “Tu és, realmente, o Filho de Deus!”» (Mt 14,33).
Igualmente, quando em certa ocasião Jesus perguntou aos seus discípulos o que pensavam dele, Marcos diz que Pedro respondeu erradamente: «Tu és o Messias»; Jesus incomodou‐se por causa do seu desacerto e «ordenou‐lhes, então, que não dissessem isto a ninguém» (Mc 8,29‐30). Pelo contrário, no Evangelho de Mateus, esta mesma resposta de Pedro foi correta, e Jesus felicitou‐o efusivamente por isso (Mt 16, 16‐17).
No dia da transfiguração no monte, Marcos diz que, ao ver o espetáculo de Jesus glorificado, Pedro propôs construir ali mesmo três cabanas para ficarem a viver no monte para sempre. E o evangelista comenta: «Não sabia o que dizia»; ou seja, dizia tontarias (Mc 9,6). Mateus, porém, embora conte que Pedro disse o mesmo, não comenta negativamente as suas palavras (Mt 17,5).
Pouco depois, enquanto iam a caminho de Jerusalém, Marcos diz que Jesus lhes falou da sua paixão, e do muito que devia padecer e sofrer; mas eles não lhe deram atenção, porque iam a «discutir uns com os outros sobre qual deles era o maior» (Mc 9,30‐33). Para Mateus, ao contrário, os discípulos prestavam atenção aos seus ensinamentos, compreenderam‐nos bem, e «ficaram profundamente consternados» (Mt 17,22‐23).
É melhor que seja a mãe
Noutro passo de Marcos, o apóstolo João informa Jesus de que pelo caminho tinham visto um exorcista a fazer milagres, e proibiram‐lho, porque não pertencia ao grupo de Jesus (Mc 9,38‐40). Mateus eliminou isto do seu Evangelho, para não mostrar os discípulos tão intolerantes e fechados.
Já próximo da entrada de Jesus em Jerusalém, onde o aguardava uma pavorosa morte, Marcos narra que dois dos seus discípulos, Tiago e João, se aproximaram dele para lhe pedirem os lugares mais gloriosos no futuro Reino de Deus (Mc 10,36‐40). Mas, segundo Mateus, quem lhe fez esse vergonhoso pedido não foram Tiago e João, mas a mãe deles (Mt 20,20), salvando assim a honra dos discípulos.
Vemos, assim, que o Evangelho de Mateus considera fundamental o tema do discipulado, e esforça‐se em destacá‐lo, tanto no vocabulário que utiliza, como em ir melhorando sistematicamente a figura dos discípulos. Porquê? Talvez porque na sua comunidade não havia meio de os crentes se comprometerem, e na sua vida cristã deixavam muito a desejar; ou porque tinham sérias lacunas na sua formação e não mostravam interesse em aprender. Perante este problema, o evangelista quis mostrar que os seguidores históricos de Jesus se esforçaram, deram o melhor de si e chegaram a ser verdadeiros discípulos até às últimas consequências.
Tudo isto explica por que motivo, na hora de procurar um substituto para Levi, o autor do Evangelho elegeu Mateus. A atitude de Levi, o cobrador de impostos de Cafarnaum, tinha sido extraordinária: respondeu imediatamente ao chamamento de Jesus, deixou tudo, renunciou ao seu prestigioso emprego e às suas riquezas. Era um verdadeiro discípulo. Fazia falta, pois, um nome que significasse “discípulo”, para o substituir. E Mateus encarnava esse papel.
Começar e acabar
Não sabemos por que motivo Levi, o cobrador de impostos de Cafarnaum, abandonou o grupo dos Doze. Mas, qualquer que fosse o motivo, para o autor do Evangelho de Mateus tratou‐se de uma atitude errada. Por isso o autor decidiu não mencioná‐lo na sua obra. Alguém que tinha deixado de seguir Jesus não era um bom exemplo de discípulo. Em seu lugar preferiu colocar Mateus, pela ressonância do seu nome, e porque ele tinha permanecido como apóstolo até ao fim.
De facto, para este evangelista, o verdadeiro discípulo é o que nunca abandona o seu Mestre. O que se mantém fiel até ao fim. O que não diz hoje sim e amanhã não. O que leva o chamamento tão a sério, que resiste firme sem se importar com os contratempos que surjam depois. Quando descobrimos isto, saber que o cobrador de impostos era Mateus torna‐se muito mais do que uma informação biográfica: transforma‐se numa contrassenha do discipulado.
Conta‐se que, nos Jogos Olímpicos de 1980, durante a corrida dos 100 metros barreiras, um dos atletas não conseguiu saltar a primeira barreira e caiu ao chão. Depois, feriu‐se na segunda. Ficou tão nervoso, que chocou contra a terceira.
Os outros concorrentes foram‐se afastando, mas ele levantou‐se e continuou a correr. O seu joelho sangrava, e quase não tinha forças nas pernas. Tropeçou no obstáculo seguinte e voltou a cair. Os outros já estavam a chegar à meta, e o público gritava para que ele abandonasse a pista, porque estava num estado lastimoso e não ia poder ganhar. Mas ele não fez caso: levantou‐se e prosseguiu a sua marcha. A multidão estava atónita, ao ver a sua persistência. Finalmente, num último esforço, atingiu a linha da meta; e todo o estádio olímpico se pôs de pé, numa estrondosa ovação. Ele também tinha chegado! Demonstrou que o importante, em qualquer tarefa, é saber chegar, quer os outros cheguem ou não. Porque o derrotado não é quem chega em último, mas o que não tenta correr, ficando sentado a olhar.
Nesta vida, todos empreendemos tarefas e projetos com alegria e entusiasmo. Mas sentimos que temos caído muitas vezes e que já não podemos mais. Pensamos que as forças nos abandonam e que a corrida está perdida. Contudo, nunca estamos tão em baixo que não nos possamos levantar, nem tão frustrados que não possamos sonhar outra vez. Levantar‐se cada dia, apesar das contrariedades, é o que carateriza o discípulo de Jesus. Porque na vida não basta começar, como Levi; é preciso terminar, como Mateus.