Lucas é um dos primeiros discípulos de Paulo na Evangelização e vários testemunhos muito antigos atribuem-lhe o terceiro Evangelho. Paulo chama-lhe também o meu caríssimo médico (Cl 4,14) e é um dos seus melhores colaboradores (Flm 24; 2 Tm 4,11).
Lucas deixou-nos duas obras: uma sobre Jesus Cristo, isto é, o Evangelho que leva também o seu nome: O Evangelho segundo S. Lucas; e uma outra sobre a vida dos primeiros discípulos de Jesus: os Actos dos Apóstolos. Entre estas duas obras há, pois uma ligação íntima, mesmo ao nível literário. Assim, no prólogo dos Actos, diz Lucas: No meu primeiro livro, ó Teófilo, narrei as obras e os ensinamentos de Jesus, desde o princípio… (Act 1,1). Deste modo, Lucas apresenta-se como um autêntico historiador dos acontecimentos sobre Jesus, dos quais ele se confessa testemunha ocular, pelo facto de repetir muitas vezes um “nós” em que ele se inclui (Act 16,10-17; 20,5-15; 21,1-18; 27,1-28,16). Mas Lucas faz sobretudo uma “história religiosa”, pois também ele é um dos servidores da Palavra de Jesus (Lc 1,2). Vejamos agora as principais perspectivas que nos ajudam a compreender este Evangelho.
1. O Evangelho da salvação de Deus no mundo dos humanos. Os acontecimentos que se referem a Cristo (Evangelho) e à Igreja (Actos) têm valor de salvação, porque actualizam a presença de Deus entre os homens, por meio de Jesus. Assim, é muito abundante o vocabulário referente à salvação: salvar (30 vezes), salvação (4 vezes), salvador (4 vezes). O título de Jesus como Salvador é central neste Evangelho. Esta salvação está presente em três tempos na história da salvação: O tempo da preparação profética na história de Israel, e a preparação pagã, o tempo de ignorância... O tempo de Jesus, que nasce num momento concreto da história; vive a vida pública enquadrada na história. A partir da Ascensão, adquire sentido pleno, o hoje da Salvação. Jesus é, pois, “O Centro do Tempo”, porque, depois vem O tempo da Igreja, tempo de acção de Jesus, pelo seu Espírito, na Igreja e no mundo.
2. O Evangelho da salvação universal (Lc 10,25-37), quanto ao tempo (passado presente e futuro). Lucas, na genealogia, relaciona-o com Adão (3,38), enquanto Mateus vai apenas até Abraão; quanto ao espaço: Simeão proclama Jesus como Luz para se revelar às nações (2,32); na apresentação da vida pública, cita a profecia de Isaías: Toda a carne verá a salvação de Deus; quanto às pessoas: Lucas apresenta personagens não israelitas como modelos de quem acolhe a Boa Nova: o samaritano é modelo de misericórdia (10,33-36), o leproso estrangeiro é curado (17,11-16), o centurião romano é modelo de fé (7,9-10), os pecadores e pecadoras são os que procuram Jesus (Lc 15,1-3) … Os estrangeiros, são também sujeito da salvação de Jesus (9,54). Deste modo, o universalismo da salvação faz parte do plano de Deus, e não é fruto da recusa do povo de Israel.
3. O Evangelho dos pobres e da libertação dos oprimidos (Lc 4,16-30; Act 4,32-35). O conteúdo da salvação universal é apresentado logo no discurso programático na Sinagoga de Nazaré (1º acontecimento público de Jesus: Lc 4,16s): Anunciar a Boa Nova aos pobres, libertação aos cativos, liberdade aos oprimidos, um ano de graça do Senhor... Não se trata de uma salvação meramente profana, mas de um dom messiânico, de uma salvação muito presente em cada momento da História. Do mesmo modo, as Bem-aventuranças de Lucas (Lc 6,20-26) apresentam-se como uma inversão dos valores do mundo, organizado no poder e na riqueza: Felizes vós, os pobres..., que vivem na confiança, na partilha de bens (Zaqueu e comunidade de Jerusalém...).
4. O Evangelho da bondade e da misericórdia de Deus (Lc 15). Os gestos e atitudes de Jesus são o reflexo do amor de Deus pelos homens, e sobretudo pelos deserdados. Deste modo, os pecadores (que se arrependem) são privilegiados de Deus (15,1-3), encontram em Jesus um amigo (7,3; 19,7); é Deus que perdoa, quando Jesus perdoa ao paralítico (5,20), à pecadora (7,36-40), a Pedro que chora (22,56-62); as pessoas são socorridas em situações dramáticas, como a viúva de Naim, a mulher corcunda, os dez leprosos...Em vez do sede perfeitos como o Pai, Lc diz: Sede misericordiosos como o Pai é misericordioso (6,36).
5. O Evangelho do Espírito Santo (Lc 24,44-49; Act 2,1-12). O Espírito Santo é mencionado 17 vezes no Evangelho, 55 nos Act (em Mt apenas 2, em Mc 6 e Jo 15). Aqui, tudo acontece por acção do Espírito: em Jesus; naqueles que o esperam e acolhem; nos Apóstolos e discípulos, para serem suas testemunhas; na Igreja dos Actos e na de hoje. O espírito é a síntese dos dons de Deus (Lc 11,9-13).
6. O Evangelho da oração (Lc 9,28-36; 11,1-13). Em todo o Evangelho respira-se um clima de oração, de louvor, acção de graças. Fala da oração de Jesus antes dos acontecimentos importantes (baptismo, eleição apóstolos, confissão de Pedro, Transfiguração, por ocasião do Pai-nosso, na previsão da fraqueza de Pedro, na cruz.... “Senhor ensina-nos a orar!” (Lc 11,1). Recolhe os ensinamentos de Jesus sobre a oração (22,40-46). Transmite os mais belos cânticos florescidos na aurora do Novo Testamento: Glória a Deus nas alturas (dos anjos), Magnficat (Maria), Benedictus (Zacarias), Nunc dimitis (Simeão). Nota: Ver Revista Bíblica nº 307, de 2006, p. 242-245.
7. O Evangelho da alegria e do louvor (Lc 1,46-55; 10,21-24). O Evangelho como feliz notícia, “Boa Nova” (10 vezes no Evangelho 18 nos Actos). Esta feliz notícia e alegria vêm da salvação universal e do amor aos pequeninos, revelado pelo Pai (10,21), em Jesus. Este louvor concretiza-se nos hinos dos profetas (Zacarias, Isabel Maria, Simeão: 2,28-32; Ana: 2,38): 1,64; aos pastores (2,20); nas multidões, perante os prodígios de Jesus (5,26; 7,16; 13,17); nos beneficiários dos milagres (13,13; 17,16.18; 18,43); na entrada de Jesus em Jerusalém (19,37-38); na boca do centurião (23,47), dos discípulos, depois da Ascensão (Act 2,47; 4,21; 11,18; 21,20). Aparece em momentos concretos: no nascimento de João Baptista (1,14.58, na anunciação a Maria (1,28), na visitação (1,41.44), na anunciação aos pastores (2,10), no regresso dos discípulos, na multidão, em Zaqueu (19,6), no próprio Cristo que “estremece” de alegria, nos discípulos de Emaús (24,41), nos discípulos depois da Ascensão (24,52). Alegria de Deus do Céu que acolhe os pecadores...Bem-aventuranças de Maria, de Isabel, homens de boa vontade, mulher que amamentou, pobres...
8. O Evangelho da mulher (7,36-50; Lc 8,1-3). Lucas transmite a mensagem da libertação da Mulher, realizada por Jesus numa perspectiva oposta ao quadro antifeminista do judaísmo. Por não ser circuncidada, não pertencia propriamente à aliança com Deus... Contra todas as regras do tempo, um grupo de mulheres seguem Jesus (8,1-3). Ele não evita as mulheres como fonte de mal. Por isso, não desdenha a amizade de Jesus com Marta e Maria (10,38), a unção dos pés por uma prostituta (7,36)... Especial importância é dada a várias mulheres: Maria, de Isabel, de Ana; às que o acompanham no Calvário, às testemunhas da Ressurreição...
9. Uma Igreja de ministérios, participativa. No Evangelho e nos Actos, encontramos os Doze; mas, nos Actos, a Igreja “inventará” outros ministérios: os diáconos (Act 6,1-6), ou o grupo dos Sete. Isto significa que a Igreja pode concretizar em ministérios concretos a dinâmica de participação na comunidade e na evangelização do mundo.