Quem era a bailarina que fez degolar João Batista?
Uma das bailarinas mais famosas do mundo é, sem dúvida, Salomé. Não sabemos se bailava bem. Só sabemos que, por uma única dança, ficou célebre no mundo inteiro. Foi na festa de aniversário de Herodes, o governador da Galileia, que ela pediu, como paga pela sua atuação, a cabeça de João Batista. Ela, não; a mãe. Leia e saiba como a figura de uma menina de 12 anos foi adulterada pela ignorância.
Beleza assassina
O macabro acontecimento marcou a sua fama para sempre. Desde então, muitos artistas pintaram-na com a cabeça ensanguentada de João na dobra do seu vestido ou numa bandeja e um sorriso satisfeito. Outros, no dramático instante do baile, excitando a imaginação de Herodes com os seus movimentos.
A literatura, o teatro e a ópera também a escolheram como tema central em muitas ocasiões. É a favorita de dezenas de filmes, desde o início do cinema. E o seu baile tornou-se tão popular, que a famosa “Dança do Ventre” e a “Dança dos Sete Véus” dizem ser inspirados por aquele seu espetáculo.
Tudo isto, fez dela o símbolo da mulher sexualmente diabólica, personificando o comportamento desenfreado e a depravação.
Mas, o que há de certo em todo esse relato do Evangelho? Quem foi, na verdade, Salomé?
Para arranjar um bom marido
Salomé era una princesa judia, descendente de uma família real estranha e complexa. Seu pai chamava-se Herodes, e era filho do famoso rei Herodes que mandara matar os meninos de Belém quando Jesus nasceu (Mt 2,13-18). Mas o pai de Salomé não se dedicava à política. Era um tranquilo cidadão que vivia em Roma, dedicado à sua família. Sua mãe chamava-se Herodíade, e era filha de outro filho do rei Herodes (Aristóbulo). Ou seja: o pai e a mãe de Salomé eram tio e sobrinha. E Salomé era, ao mesmo tempo, neta e bisneta do rei Herodes!
A menina veio ao mundo cerca do ano 16 d.C., no luxuoso palácio que a sua família tinha na capital romana. Desde muito pequena, foi educada na tradição e nos costumes judaicos. Mas, por viver em Roma, Salomé também recebeu uma educação mais liberal, própria das meninas romanas. Como elas, aprendeu a ler e a escrever, e teve aulas de baile e de música. Toda a sua formação tinha um único objetivo: conseguir um bom casamento. Por isso Herodíade, sua mãe, mulher ambiciosa e ávida de poder, procurava casá-la com o homem mais influente possível, que permitisse a toda a família subir ainda mais na escala social.
A visita inesperada
Mas, quando Salomé tinha apenas 11 anos, ocorreu um facto que mudou a sua vida para sempre. Por volta do ano 27, chegou de visita a sua casa um tio da menina, irmão de seu pai, chamado Herodes Antipas. Tratava-se de um personagem importante, pois era nada menos que tetrarca (isto é, quase um rei) da província mais rica da Palestina: a Galileia. Antipas fazia periodicamente estas viagens da Palestina a Roma, e sempre se hospedava em casa de seu irmão Herodes. Como a Palestina era uma região que dependia politicamente de Roma, Antipas costumava ir prestar contas da sua administração ao imperador Tibério, e de passo aproveitava para criticar outro governador da Palestina, Pôncio Pilatos, que mandava sobre o território da Judeia, ao sul da sua província. Pilatos sabia das más informações que Antipas costumava levar ao imperador acerca dele, e por isso tinha uma inimizade de morte por Antipas (ver Lc 23,12).
Mas, naquele ano, a visita de Antipas a Roma teve um rumo inesperado. Enamorou-se loucamente da sua cunhada, e, movido pela paixão, propôs-lhe que abandonasse o seu marido e fosse com ele para a Galileia. A ideia não desagradou a Herodíade. Em Roma levava uma vida escondida e monótona; ao contrário, na Palestina teria o título quase de rainha, e teria uma vida social ativa no ambiente político local, com grandes possibilidades de se alcandorar ainda mais. De modo que decidiu aceitar a proposta.
Por um pregador inoportuno
Herodíade, depois de acordar um divórcio apressado, abandonou o seu marido e tio, e foi com o seu novo marido e também tio Antipas. A pequena Salomé, sem perceber muito bem o que estava a acontecer, foi com eles.
Mas a manobra de Antipas teve que enfrentar outro obstáculo mais sério: o tetrarca estava casado, e a sua mulher era uma princesa árabe, filha do rei Aretas IV, vizinho da sua província. Quando a mulher soube que o seu marido regressava a casa com outra mulher, temendo pela sua vida e pelo seu futuro, resolveu fugir e procurar refúgio em casa de seu pai, na Nabateia. Assim, quando Antipas chegou à sua residência, verificou que a sua esposa já a tinha abandonado, deixando-lhe o terreno livre e desocupado para começar a viver o seu novo casamento. Então, Herodíade e Salomé instalaram-se imediatamente e sem maiores problemas no palácio de Antipas, na recentemente construída capital da Galileia, Tiberíades, sobre a margem ocidental do lago da Galileia.
Ali, a menina levou uma vida cheia de luxos e comodidades, própria de uma verdadeira princesa, convivendo com membros das famílias aristocráticas da sociedade palestinense.
Mas, o segundo matrimónio de Antipas provocou um grande escândalo em todo o país, pois violava abertamente a Lei de Moisés que proibia a uma mulher casar-se com o irmão de seu marido (Lv 20,21). Para a mentalidade judaica, o de Antipas com Herodíade era um incesto. E semelhante imoralidade não escapou às repreensões de um fogoso pregador, chamado João Batista, que nos seus sermões começou a denunciar o vergonhoso casamento do casal governante, dizendo: «Não te é lícito ter contigo a mulher do teu irmão» (Mc 6,18). E assim, acabou a paz para a recém-chegada Herodíade.
O baile mais caro da história
A pedido de Herodíade, que se sentia ultrajada com as denúncias, o marido mandou prender João Batista. Mas não quis matá-lo. Antipas sentia certo respeito, e até veneração pelo profeta judeu, a quem às vezes ia ouvir na prisão. Por isso preferiu mantê-lo vivo (Mc 6,17-20).
Mas pouco depois teve lugar o acontecimento que daria origem à lenda de Salomé e que marcaria o seu destino para sempre. São Marcos conta que Antipas celebrou uma festa de aniversário, e convidou os personagens mais notáveis da corte, gente na sua maior parte endinheirada, mas provinciana, e por isso ansiosa por conhecer e admirar os refinamentos da capital. Herodíade, que gostava de se jactanciar do nível cultural adquirido na metrópole do império, encontrou a forma de assombrar os comensais, e de passagem mostrar a hierarquia da corte de seu marido. Preparou Salomé, que na alta sociedade romana tinha aprendido atrativos bailados, dos que aquela gente tosca não fazia a menor ideia, para que oferecesse um espetáculo original. E em pleno festim, quando os humores do vinho e o enfartamento pela comezaina se haviam apoderado dos convidados, a pequena Salomé, quase sem saber o que se passava, foi introduzida na sala do banquete para fazer a sua exibição.
A cabeça como salário
Segundo Marcos, quando a dança terminou, Antipas prometeu à bailarina oferecer-lhe o que ela quisesse, «nem que seja a metade do meu reino.» Ela, então, consultou a sua mãe: «Que hei de pedir?» (Mc 6,22-24). É estranho que alguém com 16 ou 17 anos, como foi imaginada pela arte ao longo dos séculos, ou como parece deduzir-se da palavra utilizada pelas Bíblias, se mostre tão dependente de sua mãe; e que, tendo a possibilidade de enriquecer enormemente num instante, com tal proposta, acabe por pedir algo que para ela não tem nenhum valor, como a cabeça do profeta João.
Marcos parece dar-nos a explicação. Quando fala dela usa a palavra grega korásion (Mc 6,22), que, embora as Bíblias traduzam por «jovem», ou “rapariga”, na realidade é usada para falar de uma menina pequena, que ainda não chegou à puberdade. Salomé, pois, na noite do seu baile, deveria ter 11 ou 12 anos. Isto é confirmado pelo episódio da ressurreição da filha de Jairo. Ali, Marcos também chama à menina ressuscitada korásion, e diz que «tinha doze anos» (Mc 5, 42).
Por isso Salomé pergunta a Herodíade; e por isso acaba por pedir algo sem valor para ela, embora o tivesse para a sua mãe. Esta, vendo a oportunidade de se libertar do pregador que tanto a tinha humilhado, respondeu que pedisse a cabeça do Batista.
E assim, nessa tarde, o desditoso profeta foi decapitado e a sua cabeça entregue, num prato, à bailarina, que, seguindo o relato, deve ter recebido com horror o macabro presente, pois, sem compreender muito bem, o entregou logo à sua mãe satisfeita.
Ecos distantes de salvação
Os meses foram passando, e Salomé continuou com uma vida agradável e tranquila em casa do padrasto. Ocupava o tempo em reuniões sociais, tertúlias de ócio, e sobretudo na bisbilhotice, um dos passatempos preferidos no palácio herodiano, onde nunca faltavam escândalos.
Precisamente nessa altura, circulavam os rumores acerca de um camponês da Galileia, chamado Jesus, que percorria as povoações e aldeias a pregar uma nova mensagem de salvação. Toda a elite herodiana estava alarmada, porque Jesus, tal como João Batista, não temia criticar o poder, denunciar o modo como eram tratados os mais pobres e anunciar a chegada do reino de Deus.
Mas, um pormenor especial tinha transformado Jesus no aperitivo favorito das mulheres do palácio: e era que Joana, a esposa de Cusa, o superintendente de Antipas (mais ou menos equivalente a Ministro da Economia), se tornara sua seguidora e o ajudava com os seus bens a custear os gastos dele e dos discípulos (Lc 8,2-3). Ou seja, que Jesus estava a receber apoio financeiro da própria casa herodiana! Podemos imaginar o espanto e os comentários que tal notícia terá levantado.
É mesmo possível que Salomé tenha ouvido falar de Jesus à própria Joana. Mas não deve tê-lo visto pessoalmente, uma vez que Jesus nunca foi pregar a Tiberíades; é que esta cidade estava construída sobre um antigo cemitério, o qual a fazia impura, pelo que não habitava ali nenhum judeu. Por isso Jesus, que dirigia a sua mensagem especialmente aos judeus, não teve motivos para lá ir pregar.
Uma boda desagradável
Nos inícios do ano 30, Salomé já tinha 14 anos, idade com que as adolescentes costumavam casar. Herodíade encontrou o candidato ideal para a sua filha, na própria família: um tio de Salomé, chamado Filipe, irmão de seu pai/padrasto. Também ele era tetrarca, governando a região a norte da Galileia. Nesse sentido, tratava-se de um magnífico enlace, pois ia permitir à jovem continuar a ocupar um dos escalões mais altos da pirâmide do poder.
Mas o noivo de Salomé tinha um problema: era uns cinquenta anos mais velho que ela. Ou seja, a candidata viu-se depressa numa situação muito incómoda, ao estar comprometida com alguém que podia ter sido seu avô. Não sabemos se aceitou resignadamente o seu destino, ou se chorou e suplicou à sua mãe que mudasse de opinião.
O certo é que, chegado o momento, Salomé abandonou Tiberíades e mudou-se para a cidade de Cesareia de Filipe, uns 90 quilómetros ao norte, onde vivia o seu noivo, para celebrar o matrimónio. Nunca chegou a saber que, nessa mesma altura, na distante Jerusalém, crucificavam o pregador galileu que um dia tinha conquistado o coração de Joana, e de quem ela tanto ouvira falar nas horas livres de Tiberíades.
A única imagem de mulher
O marido de Salomé era homem bom e justo e um governante reto. Mas o tempo ia passando e ele não dava filhos a Salomé, que deseja ansiosamente um herdeiro lhe lhe garantisse posteridade e justificasse a sua presença na corte. Finalmente, após um curto período de matrimónio, o seu marido morreu no ano 34. Com apenas 18 anos, Salomé tornou-se uma triste viúva sem filhos. E embora lhe permitissem continuar no palácio, a sua situação corria perigo. Tinha que voltar a casar-se quanto antes possível.
Para cúmulo dos seus males, pouco depois chegou-lhe de Tiberíades a triste notícia de que a sua mãe Herodíade e Antipas caíram na desgraça do imperador de Roma, que os desterrara para as Gálias (França). Salomé perdeu assim a sua mãe, que não mais voltou a ver. Já não tinha a quem recorrer, como na noite do baile de aniversário, para se aconselhar nos seus problemas.
Mas a sorte voltou a sorrir-lhe depressa. Por volta do ano 41, um seu primo chamado Aristóbulo engraçou com ela e elegeu-a para esposa. Salomé teve, então, que transladar-se para um lugar muito longe daquele onde vivia, mais para norte. Mas estava feliz. Este marido era nove anos mais novo que ela (tinha apenas 15!), e seria o futuro rei da Arménia Menor (na atual Turquia); de modo que, Salomé em breve seria rainha. Com isso subiria mais um degrau na escala social: de esposa de um tetrarca, passaria a esposa de um rei. E, como se fosse pouco, Aristóbulo ia dar-lhe algo que ela não tinha conseguido com o seu anterior marido: três filhos, aos quais chamou Aristóbulo, Herodes e Agripa.
O novo marido de Salomé deveria gostar muito dela, porque no ano 56 cunhou no seu reino uma moeda, em que apareciam os dois, um em cada face, com esta inscrição na face dela: “Rainha Salomé”. Por esta moeda, Salomé tornou-se a única personagem mencionada nos Evangelhos cujo retrato chegou até nós. Pouco depois, Aristóbulo emitiu outra moeda, mas desta vez só com a imagem dele. Talvez a sua amada rainha tivesse morrido. Não chegou a cumprir 45 anos.
Cabeça por cabeça
Salomé não foi uma mulher perversa. Parece ter sido uma boa filha, boa esposa e boa mãe. E o episódio mais famoso da sua vida não foi querido por ela: deveu-se aos desejos de vingança da sua mãe, que a utilizou para os seus propósitos.
Contudo, o sentimento popular nunca se esqueceu daquele incidente e assanhou-se com a sua memória. Assim, uma lenda medieval conta que certo dia, quando ela cruzava um rio congelado, o gelo quebrou-se e ela caiu à água; e com tão má sorte, que o afiado borde do gelo lhe cortou a cabeça. Deste modo, o destino ter-lhe-ia devolvido o que ela fizera a João: cabeça por cabeça!
Também a pintura se encarniçou com ela. Se nos quadros mais antigos a cabeça do Batista aparece pintada nas mãos de sua mãe Herodíade, a partir do Renascimento é Salomé quem a segura, atribuindo à infausta princesa o crime da sua progenitora.
Algo semelhante sucedeu na literatura. Já em 1863, o escritor francês Ernest Renán, numa biografia de Jesus, a descrevia como depravada e artista de bailes eróticos. Mais tarde, em 1877, Gustave Flaubert compôs uma breve história de Herodíade, onde o baile de Salomé é uma espécie de “Dança do Ventre”. Mas será Oscar Wilde quem lhe vai dar o tiro da misericórdia, em 1892, com a sua famosa obra de teatro “Salomé”. Nela, imagina-a enamorada de João Batista; antes de começar a festa de aniversário, declara-lhe o seu amor e tenta beijá-lo, mas o austero pregador rejeita-a. Então decide seduzir Antipas com o seu baile, para lhe poder pedir a cabeça do Batista; e quando lha trazem numa bandeja, perante o horror dos presentes, beija os lábios frios e inertes do profeta decapitado e exclama, triunfante: «Finalmente beijei a tua boca, profeta!».
A obra de Wilde, com a sua necrofílica Salomé, foi posteriormente transformada em ópera por Richard Strauss. A partir daí, a novela, o teatro, o ballet, o cinema, a dança, o striptease e todo o espetáculo erótico que se quis promover, teve como anzol o nome da princesa judia.
A verdadeira Salomé foi apenas um joguete nas mãos de sua mãe Herodíade, que a usou para saciar a sua vingança. Mas, hoje, Herodíade é quase desconhecida e Salomé tornou-se famosa, embora pelos motivos errados: a tradição transformou-a num símbolo de perversão e lascívia!
Aristóteles dizia: «Zangar-se é fácil; mas, zangar-se com a pessoa certa, pelo motivo certo, e na medida certa – é exclusivo de sábios.»
Tinha razão, Aristóteles. Com Salomé, a tradição comportou-se como néscia. Mas algo podemos fazer, ainda, para reabilitar a sua memória.
Publicado na Revista Bíblica, nº 365 (2016) pp. 3-8