Segundo a Bíblia, Deus amassou pó da terra e fez Adão, o primeiro homem. A partir de uma costela dele fabricou Eva, sua mulher. E depois colocou-os no meio de um paraíso fantástico. Ambos viviam nus sem se envergonharem, e Deus, pelas tardes, costumava descer para visitá-los e falar com eles (Gn 2). Apenas um mito de origem ou um conto infantil? Leia, porque um alto tratado teológico não o diria melhor.
Nem de barro nem de uma costela
Esta estória, que nos entusiasmava quando éramos crianças, coloca-nos sérias dificuldades agora que somos adultos. A ciência moderna, graças às teorias de Darwin, demonstrou que o ser humano foi evoluindo a partir de seres inferiores, desde o Australopitecus, há uns 3 milhões de anos, passando pelo Homo Habilis, o Homo Ergaster e o Homo Sapiens, até chegar ao ser humano atual.
Hoje sabemos, pois, que o homem não foi formado nem de barro, nem de uma costela; que no princípio não houve apenas um par, mas vários; e que os primeiros seres huma-nos eram primitivos, não dotados de sabedoria e perfeição. Então, porque relata a Bíblia desse modo a criação do homem e da mulher? Simplesmente porque se trata de uma parábola, um relato imaginário, que pretende transmitir às pessoas um ensinamento religioso.
O texto foi composto por um catequista hebreu anónimo, a quem os estudiosos chamam o “yahvista”, provavelmente nos fins do século VII a.C.. Naquele tempo, nem sequer se tinha ideia da teoria da evolução. Mas, como o seu objetivo não era oferecer uma explicação científica, mas teológica da origem do ser humano, o autor escolheu este género de conto em que cada um dos pormenores tem a sua mensagem religiosa, segundo a menta-lidade daquela época. Tentaremos averiguar, agora, o que o autor nos quis ensinar com esta narrativa.
A chispa da vida
O primeiro pormenor que chama a nossa atenção é o homem ter sido criado a partir do barro. O livro do Génesis diz que, no princípio, quando a terra ainda era um imenso deserto, «o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo» (Gn 2,7).
Para entender isto é preciso ter em conta que aos antigos sempre causou surpresa verem que uma pessoa, pouco tempo depois de morrer, se convertia em pó. E chegaram à conclusão de que o corpo humano era, fundamentalmente, feito de pó. A ideia estava de tal modo espalhada em todo o oriente, que se encontra inserida na maioria dos povos. Os babilónios, por exemplo, contavam como os seus deuses haviam amassado os homens com barro; e os egípcios representavam nas paredes dos seus templos a divindade a amassar o Faraó com argila. Gregos e romanos partilhavam, igualmente, esta opinião.
Por isso, quando o escritor sagrado quis narrar a origem do homem, fundamentou-se nessa mesma crença popular. Porém, incorporou uma novidade no relato: que o ser hu-mano não é unicamente pó, mas possui no seu interior uma chispa especial de vida que lhe vem de Deus, que o distingue dos outros seres vivos, e que o torna sagrado. Por isso, não só o rei ou o Faraó são “divinos”; toda a pessoa, qualquer “homem da rua” é filho de Deus. Foi isso que o autor de Génesis quis exprimir, quando contou que Deus “lhe insuflou pelas narinas o sopro da vida».
Começava, assim, a revolucionar-se a conceção antropológica daquela época.
Um Deus de joelhos
O segundo pormenor que chama a atenção no relato é a imagem de um Deus oleiro, de joelhos no chão, amassando barro com as suas mãos e soprando nas narinas de um boneco. Porém, na mentalidade daquela época, tudo era homenagem a Deus.
Com efeito, de todas as profissões conhecidas na sociedade de então, a mais digna, a mais grandiosa e excelsa, era a do oleiro. Como impressionava ver esse operário que, com um pouco de argila, material ordinário e sem valor que se encontrava no chão em qualquer sítio, era capaz de modelar e criar preciosos objetos: vasilhas, vasos refinados e esquisitos utensílios com grande maestria.
O escritor “yahvista”, sem pretender ensinar cientificamente como foi a origem do homem, porque também a desconhecia, quis indicar algo mais profundo: que cada homem, qualquer que ele seja, é uma obra direta e especialíssima de Deus. Não é mais um animal da criação, mas um ser superior, sagrado e grandioso, porque o próprio Deus em pessoa se deu ao trabalho de o modelar.
A imagem do Deus oleiro fará o seu percurso na Bíblia, e será consagrada como uma das mais bem conseguidas. Ao longo dos séculos reaparecerá muitas vezes, nos diferentes livros, para indicar ao mesmo tempo a extrema fragilidade do ser humano como criatura, e a sua total dependência de Deus. É o que exprime a célebre frase de Jeremias: «Casa de Israel, não poderei fazer de vós o que faz um oleiro? Como o barro nas suas mãos, assim sois vós nas minhas, casa de Israel – oráculo do Senhor» (Jr 18,6).
A solidão do homem
A seguir, aparece no relato uma série de pormenores curiosos e muito interessantes. O autor diz que Deus colocou o homem, que havia criado, num maravilhoso jardim, cheio de árvores que lhe davam sombra e o proviam de saborosas frutas (Gn 2,9). A água sobreabundava no jardim, pois era regado por um imenso rio com quatro braços. Para os leitores daquela época, vivendo em terrenos áridos onde escasseava a água, esta descrição era deslumbrante e dava-lhes uma perfeita imagem da felicidade de que teriam desejado desfrutar.
Mas, de repente o relato detém-se. Algo parece ter saído mal. O próprio Deus pressente que aquilo que tinha feito não é bom, pois o texto diz: «Não é bom que o homem esteja só» (v.18). Apesar de toda aquela criação à sua volta, o homem ficou solitário, sem poder comunicar com ninguém. Estava rodeado de luxos e bem-estar, mas não tinha com quem relacionar-se.
Companhias inadequadas
O Génesis diz, então, que Deus procura corrigir a sua falta mediante uma nova inter-venção. Com grande generosidade, cria todo o tipo de animais, os que vivem no campo e as aves do céu, e apresenta-os ao homem para que dê o nome a cada um e eles lhe sirvam de companhia (Gn 2,19). Mas o homem não encontrou um companheiro adequado (Gn 2, 20). Deus voltara a enganar-se…
Depois de refletir, tentará resolver o seu segundo erro, mediante uma nova obra: «Então o Senhor Deus fez cair sobre o homem um sono profundo; e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma das suas costelas, cujo lugar preencheu de carne. Da costela que retirou do homem, o Senhor Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem. Então, o homem exclamou:
“Esta é, realmente,
osso dos meus ossos
e carne da mina carne.
Chamar-se-á mulher,
Visto ter sido tirada do homem.” (Gn 2,21-23).
Agora, sim, Deus teve êxito. Pode sorrir satisfeito porque finalmente conseguiu um bom resultado. O homem encontrou a sua felicidade completa com a presença da mulher.
As três mensagens
Segundo a mentalidade do autor, estas cenas ingénuas e pueris, que mostram Deus aparentemente a enganar-se e a não conseguir satisfazer os gostos do homem, encerram três profundos ensinamentos.
O primeiro: que a solidão do homem não é boa. Que ele não foi criado para gozar sozinho do seu próprio “paraíso”; que deve aprender a partilhar com os outros; que todo o homem que disfruta dos seus bens de maneira isolada e egoísta, sem partilhar a sua vida com os outros, «não é bom», e não encaixa no plano de Deus. Naquele patético e solitário Adão, o autor denuncia a tragédia de quantos, naquele tempo, viviam na sua solidão e isolamento social, esquecendo-se dos outros seres humanos que necessitam de partilhar com eles.
O segundo ensinamento está na frase que diz que, nos animais, Adão «não encontrou uma auxiliar semelhante a ele» (v.21). Com ela, quis advertir que os animais não estão ao mesmo nível que o homem; que não têm a sua mesma natureza; e, portanto não estava bem que este se relacionasse com aqueles como o fazia com as pessoas. Com muita finu-ra e delicadeza, o autor condena o pecado da “bestialidade”, isto é, as práticas sexuais com animais, que então se encontravam difundidas em certos lugares do antigo oriente.
O terceiro ensinamento pretende explicar que é bom para o homem deixar o seu pai e a sua mãe, afetos tão sólidos e estáveis naquela época, para se unir a uma mulher. Porque essa misteriosa tendência que todo o homem sente em relação a ela procede de Deus, e só renunciando com generosidade a outros vínculos, familiares e sociais, o homem pode unir-se a ela de maneira plena. É o primeiro canto da Bíblia ao amor conjugal.
Nomear os animais
Também a cena em que todas as espécies de animais desfilam perante de Adão en-quanto este lhes dá o nome, tinha um sentido profundo para os leitores daquela época.
Na Bíblia, “pôr o nome a” significa “ser dono de”. De facto, no antigo oriente o nome não era apenas um título, mas representava o próprio ser da coisa nomeada. E saber o nome de alguma coisa, ou pôr o nome, equivalia a ter poder sobre a coisa ou a pessoa.
Por isso a Bíblia diz que, ao criar o mundo em seis dias, Deus foi dando o nome a cada coisa: “dia”, “noite”, “céus”, “terra”; para mostrar o seu senhorio sobre o cosmos. Também em família, eram os pais que punham o nome aos seus filhos, como sinal de propriedade. E entre os 10 mandamentos, havia um que mandava «não invocar o nome de Deus em vão», para evitar utilizá-lo como sinal de dominação. Ainda hoje, os judeus não se atrevem a mencioná-lo, para no mostrar supremacia e poder sobre Deus.
Assim, apresentar Adão a pôr os nomes a todos os animais é o mesmo que dizer que ele é senhor deles, que está acima de todos, que lhe pertencem e que estão ao seu serviço.
Um modo de confessar que o ser humano é o rei da criação, e portanto quem deve estar ao encargo dela.
O divino é invisível aos olhos
Outro pormenor fascinante é o profundo sono que Deus fez cair sobre Adão antes de criar a mulher. Muitos interpretam-no como uma espécie de anestesia preparatória, uma vez que Deus ia intervir cirurgicamente em Adão para lhe extrair uma costela. Mas o nosso autor entendia muito pouco de medicina, e seria um desatino imaginá-lo aqui a antecipar-se em tantos séculos a essa prática da cirurgia moderna. O sonho de Adão tem, antes, a ver com a conceção que o autor tinha da ação criadora. Criar é um segredo de Deus. Só Ele o conhece e sabe fazer. O homem não pode presenciá-lo. Por isso enquanto Deus cria. Ao acordar, não sabe nada do que sucedeu. A mulher recém-criada, também não, pois quando se deu conta de que existia já tinha sido formada.
Com esta cena, o autor adverte que a atuação de Deus no mundo é invisível aos olhos humanos. Só a podemos perceber pela fé.
O atrevimento de Eva
Mas, o momento culminante da narrativa, e de algum modo o centro de todo o rela-to, é constituído pelo pormenor da mulher formada da costela de Adão.
O nosso autor utiliza aqui uma bela imagem, para deixar aos leitores a maior lição de todas: ao criar a mulher, Deus não tirou um osso da cabeça do homem, pois ela não está destinada a mandar no lar; mas tão-pouco pegou num osso do pé, porque não está des-tinada a ser serva do homem. Fê-la da sua costela, ou seja, do seu lado, para a colocar à mesma altura do homem, ao mesmo nível e com idêntica dignidade.
Naquela sociedade marcadamente machista, em que a mulher carecia de direitos e tinha quase o estatuto de um animal, ao serviço exclusivo do seu marido e um instrumento para seu prazer, o autor quis exprimir a igualdade absoluta dos dois sexos. Ao indicar que ambos têm a mesma origem (as mãos de Deus), e que ela era a ajuda “adequada” do homem, deixa assente o maior e mais autêntico princípio feminista da história.
Esse atrevimento, em declarar a mulher semelhante ao homem, constituiu uma ideia revolucionária na sua época, e não há dúvida que deve ter escandalizado enormemente os seus contemporâneos.
Nus, como recordação
O relato termina com um último pormenor sugestivo: «Estavam amos nus, tanto o homem como a mulher, mas não sentiam vergonha» (Gn 2,25). Mais adiante, quando Adão e Eva desobedecerem a Deus e comerem do fruto proibido, dirá: «Então, abriram-se os olhos aos dois e, reconhecendo que estavam nus, coseram folhas de figueira umas às outras e colocaram-nas, como se fossem cinturas, à volta dos rins» (Gn 3,7).
Esta alusão à nudez alimentou a imaginação dos leitores ao longo dos séculos, e levou a pensar que o pecado do primeiro par humano tinha que ver com o sexo. Porém, com esta observação, o autor apenas procurava transmitir uma derradeira mensagem aos seus leitores, baseado na experiência cotidiana. De facto, via que as crianças pequenas anda-vam nuas sem se envergonharem. Mas, ao entrarem na puberdade, apercebiam-se da nudez e cobriam-se. Ora bem, essa fase coincidia com a idade em que todos tomam cons-ciência do bem e do mal, e são responsáveis pelos seus atos.
O autor yahvista quis assim dizer que todo o ser humano, ao entrar na idade adulta, é pecador, e portanto responsável por muitas das desgraças que o rodeiam e que estão presentes na sociedade. Ninguém pode considerar-se inocente diante do mal que nos rodeia, nem pode dizer: “Eu não tenho nada a ver com isso.” Por isso, todos sentem vergonha da sua nudez.
O autor procurou, assim, estabelecer um vínculo entre a condição de pecador de cada pessoa, e o fenómeno universalmente percebido da nudez (frequente, além disso, naquela época pelo tipo de túnicas curtas que os homens usavam). Esta vergonha devia servir-lhes de “recordação” dos seus pecados.
Um homem e uma mulher
A narrativa de Adão e Eva não contém um relato histórico. Com ela, a Bíblia não pretende ensinar “como” foi a origem do homem e da mulher. O escritor sagrado não o sabia. O que ele nos quis dizer foi “donde” surgiram: das mãos de Deus. O “como” deve ser explicado pelos cientistas. O “de onde” é respondido pela Bíblia.
Com o passar do tempo, os cientistas poderão ir mudando as suas respostas sobre “como” foi o aparecimento do homem (se sempre existiu como é hoje, se evoluiu a partir de seres primitivos, se as suas primeiras partículas provêm de outras galáxias, etc.). A Bíblia, pelo contrário, nunca mudará o seu “de onde”: das mãos de Deus, que foi quem dirigiu todo o processo proposto pelas ciências. Por isso, não devemos temer que apareçam novas visões científicas. Porque a Bíblia manterá sempre invariável a sua mensagem: o homem, frágil criatura de barro, é a obra-prima de Deus. Cada homem é sagrado e irre-petível, porque tem um “sopro” de Deus. Ele é o rei e o responsável da criação. E a mulher participa da mesma grandeza, jerarquia e dignidade que ele.
Um tratado de alta teologia, não o teria expressado melhor do que este conto infantil.
Publicado na Revista Bíblica nº 375 (2018) pp.4-9